Tuesday, April 16, 2013

Hugo Chávez morreu, Viva Hugo Chávez e a Revolução Bolivariana!



por P.I Bvilla, pelo Órgão Central do PCML (Br).
 
Nota do PCML: Hugo Chávez morreu, Viva Hugo Chávez e a Revolução Bolivariana!
A morte de Hugo Chávez Frías, líder incontestável da Revolução Bolivariana na Venezuela e expressão singular da plêiade de lideranças, que a partir dos anos 90, fulgurara no cenário político da América Latina, em resistência à estratégia neoliberal do imperialismo estadunidense abre uma nova fase no processo revolucionário na Venezuela com profundas repercussões no continente latino-americano e luta dos povos oprimidos no mundo.

Na Venezuela a questão fundamental que se apresentará é até que ponto a Revolução Bolivariana consolidou raízes e lideranças junto ao povo venezuelano capazes de ir além em sua marcha rumo ao Socialismo do Século XXI. O que remete à questão teórica da simbiose entre as ideias libertárias de Simón Bolívar e próceres da luta pela independência da América Latina com as ideias revolucionárias do marxismo-leninismo ao estilo do caminho que se seguiu em Cuba, de Martí a Fidel. Em termos da América Latina a questão que se apresenta é até que ponto o processo interno na Venezuela reduzirá suas relações econômicas e políticas solidárias com o processo revolucionário na América Latina e Oriente Médio, revertendo o impulso dado por Chávez à soberania econômica e política frente aos Estados Unidos.

Quanto às análises que buscam interpretar as tendências históricas do processo revolucionário bolivariano a partir deste trágico, porém já esperado, desdobramento da luta de Chávez contra o câncer, focadas nas teses do carisma e populismo weberianos esquecem que o fundamental não está nem no carisma, nem na ilusão política do personagem que liderava a Revolução Bolivariana, pois não foi pelo carisma que um jovem tenente-capitão em 1992 se levantou em armas, acompanhado de trezentos homens em assalto ao poder, emblemando a raiz histórica e razão de ser de Nossa América independente. Neste caso, se explica mais pelos ideais revolucionários e a coragem política de ir às últimas consequências destes ideais, ao contrário da trajetória focada no discurso carismático, próprio dos clérigos e pastores protestantes; por outro lado, os que o enquadram sob o rótulo populista, expressão vinculada ao discurso enganoso que promete o céu na terra, também erram, pois desde seu martírio no cárcere até sua anistia e eleição, todas as suas promessas programáticas se destinaram à promover a soberania e integração do Povo Venezuelano e a América Latina, portanto, o ideal bolivariano e paralelamente a este processo desenvolver as instituições e distribuição da riqueza de forma socializada; a estatização do petróleo, reforma agrária, comunas de produção agrícolas, obras de infraestrutura, alfabetização, saúde, enfim, medidas indeléveis de igualdade e dignidade para o Povo pobre da Venezuela, sem o recurso da perseguição política discricionária e fora dos marcos da legalidade constitucional.

Naturalmente, guardadas as devidas proporções, o processo revolucionário que se seguiu na Venezuela encontra seu paralelo em Cuba e, por mais distante que pareça, na Rússia de Lênin, pois trata-se de um processo político que, impulsionado pelas contradições econômicas é alavancado pela luta de classes projetando o fator subjetivo à frente do objetivo, constituindo o que se chamou de revolução de cima para baixo. Nestes termos, em que o processo histórico é dirigido pelo fator subjetivo a objetividade econômica e estrutural da sociedade reduz a elasticidade da subjetividade das estratégias, programas e projetos revolucionários frustrando sua completa realização, porém, instigando a necessária complementação, ratificação e retificação e autocrítica da ação revolucionária. Ao senso comum é simples comparar, como fazem os arautos da mídia nazifascista, a ideia do populismo político do “prometeu mas não cumpriu” ou o conceito vulgar do caudilhismo quando as forças revolucionárias são premidas a irem além de seu esforço regular, esgarçando -se em seus pontos mais frágeis, que servem de prato cheio para a oposição reacionária; porém, é impossível para uma sociedade onde o desenvolvimento das forças produtivas foram atrofiadas desde sua formação como Estado nacional pela divisão internacional do trabalho superar estas atrofias. Não é fácil para um país que por quase um século viu sua estrutura econômica moldar-se a produtor de petróleo para alimentar o imperialismo estadunidense, atrofiando sua agricultura, seu desenvolvimento comercial e o seu povo, alterar radicalmente esta condição, tornando-se autossuficiente, soberano e igualitário em menos de uma década e meia, período de triunfo da Revolução Bolivariana. A redução weberiana na análise histórica da Revolução Bolivariana ou a velha e surrada crítica do reacionário Tocqueville à Revolução Francesa, que mescla o discurso neoliberal em sua crítica à centralização e ao planejamento do esforço revolucionário para atingir suas metas com os inevitáveis desvios, descontroles e outros problemas que acarretam a realização das mesmas não são novidades, nem representam nada de novo para a humanidade. O problema fundamental de Capriles e dos grupos imperialistas e reacionários na Venezuela que o apoiam está, precisamente, neste discurso carismático e populista, que a exemplo mais nu pode ser encontrado em Carmona e seu caudilhos, no sentido vulgar da expressão, cuja pequena mostra exigiu o martírio do povo venezuelano contra o golpe a Chávez e à Revolução Bolivariana.

Os EUA e sua diplomacia de rapina utilizam-se destas forças reacionárias de todas as formas possíveis, financiam sua propaganda e atentados contra lideranças revolucionárias; talvez hoje a Venezuela seja o maior ponto de concentração da espionagem internacional e de mercenários, visando o “outono revolucionário” neste país. Num paralelo entre a Revolução cubana e a Revolução Bolivariana na Venezuela não é exagero pensar na estranha origem da doença que causou a morte do Presidente Chávez como atentado, a exemplo das centenas de atentados, todos documentados e registrados, contra Fidel Castro, ou ainda o envenenamento de Yasser Arafat, na verdade, parece coincidência muito grande que Cristina Kirchner, Fernando Lugo, Dilma Rousseff e Lula tenham tido quase que simultaneamente – a exemplo de Chávez, câncer; todos lideranças que despontaram nos anos 90 na América Latina em oposição às estratégias e forças neoliberais dos EUA no continente. Este capítulo na história destas lideranças na América Latina aguarda uma versão.

Deste modo, nada se pode esperar da análise proveniente dos opositores e forças reacionárias na Venezuela e demais países da América Latina, em especial, no Brasil, pois a tendência histórica que ora se apresenta na Venezuela será o impulso à Revolução Bolivariana adiante, por um lado porque é impossível a reprodução de uma liderança política igual a Chávez, capaz de sustentar uma correlação de forças dentro da sociedade que permita avançar pontualmente a Revolução, mantendo-se num quadro de integração da América Latina e Oriente Médio e, ao mesmo tempo, manter relações necessárias com os Estados Unidos; por outro lado, porque tanto as forças revolucionárias como as forças reacionárias buscarão preencher o vazio político deixado por Chávez como figura singular e expressão política do processo revolucionário venezuelano. Naturalmente, Nicolás Maduro, ex-sindicalista e expoente de primeira grandeza do governo revolucionário de Chávez, inclusive indicado por este à sua sucessão tende a se tornar o repositório de toda a vontade política popular de avançar a Revolução adiante; entretanto, mesmo rotulado como bom negociador, não será capaz de sustentar a atual correlação de forças, caso sua liderança não esteja em harmonia com as Forças Armadas e o Poder Legislativo, o que implica em um aprofundamento do programa revolucionário, que ultrapasse os limites da representação política e se condense na unidade de objetivos estratégicos e táticas das forças revolucionárias, vencendo as limitações históricas da ceifa de lideranças, que se processou na América Latina no decurso da guerra suja, ancoradas nas ditaduras militares pró-EUA. Este vácuo de lideranças que repousam no silêncio dos cemitérios legais e clandestinos das ditaduras retiraram do movimento revolucionário, que se insurge nos anos 90, as bases para a consolidação de uma força revolucionária capaz de sustentar até as últimas consequências o Programa da Revolução. As tentativas de construção revolucionária, conduziram Chávez do Movimento Quinta República ao Partido Socialista Unido da Venezuela (PSUV), reconfigurando a disposição e correlação de forças intra e extra revolucionárias. Com a ausência de Chávez chegou o momento em que esta força e suas lideranças são chamadas a irem além do esforço regular, trata-se estrategicamente de projetar-se à frente, avançando os limites da Revolução para uma maior margem de manobra quando de uma nova onda contrarrevolucionária . Hugo Chávez compreendia muito bem este vazio revolucionário na América Latina decorrente das ditaduras militares. Daí, a tese do resgate do ideário bolivariano, unificando as forças revolucionárias para além do ideário socialista, conformando uma grande maioria como base fundamental da Revolução. Por outro lado, via em Cuba e no processo histórico da Revolução Russa os ensinamentos teóricos e fundamentos práticos revolucionários, que imprimiam a direção do ideário e as bases materiais da Revolução Bolivariana ao Socialismo. Sua expressão de Socialismo do Século XXI repousa fundamentalmente nesta simbiose. Cabe, assim, esperar das forças revolucionárias da Venezuela a continuação deste caminho projetando-se à frente do processo objetivo para que este último consolide e avance em suas conquistas econômicas e sociais.

O Brasil, a Argentina, a Bolívia, o Equador, a Nicarágua, Cuba, todos cuja ideia estratégica de soberania e independência exige o árduo caminho de ruptura com as condições de submissão ao imperialismo estadunidense, europeu e asiático e construção de um novo paradigma de desenvolvimento econômico e social, capaz de projetar dias melhores para todos devem, político, econômico e praticamente somarem-se ao Povo venezuelano e suas forças revolucionárias no comando da Revolução Bolivariana, apoiando o seu processo de avanço e consolidação no sentido da integração continental bolivariana e na direção da igualdade social e econômica socialista. Chávez está morto, Viva Chávez! 

Viva a Revolução Bolivariana na Venezuela e continental!

Ousar Lutar, Ousar Vencer!

Monday, April 8, 2013

Iraque: 10 º aniversário do crime estadunidense contra a humanidade



por Sara Flounders, traduzido por Vinicius C. para o Batalha de Ideias.

Os grandes meios de comunicação nos EUA desempenham um papel importante na preparação para a guerra imperialista. Eles desempenham um papel ainda mais insidioso em reescrever a história das guerras dos EUA e obscurecendo seus propósitos.

Estão totalmente interligados com os militares dos EUA, o petróleo e as corporações financeiras. Em toda guerra, esta instituição extremamente poderosa conhecida como "quarto poder", um braço das relações públicas do domínio corporativo, justifica a pilhagem imperialista e o esmagamento de todos os dissidentes.

Reminiscências da imprensa corporativa e avaliações da presente semana do 10 º aniversário da Guerra do Iraque, que começou a 19 de março de 2003, são um lembrete austero de sua cumplicidade na guerra.

Nos vários artigos publicados há poucas menções às centenas de notícias que saturaram totalmente os meios de comunicação nos meses que antecederam o ataque do Pentágono. A cobertura da imprensa em 2003 foi completamente infundada, com as mentiras das "armas de destruição em massa" secretas iraquianas, sinistras ameaças nucleares, programas de guerra biológica, compra de urânio, laboratórios de gás nervoso e a demonização racista de Saddam Hussein como a maior ameaça para a humanidade. Tudo isso agora está encoberto e esquecido.

As armas nunca foram encontradas no Iraque, mas nenhum oficial estadunidense foi acusado de fraude. Heróis como o soldado B. Manning, no entanto, enfrentam a vida na prisão por liberar documentos expondo a extensão de alguns destes crimes premeditados.

Hoje, nas histórias populares, uma vaga menção é feita à verdadeira razão para a guerra: a disposição de impor uma mudança de regime no Iraque, a fim de garantir o controle corporativo dos EUA e o domínio dos vastos recursos de petróleo e gás da região. O Iraque era para ser um exemplo para todos os países que tentam um desenvolvimento independente de que a única opção era a completa submissão ou a destruição total.

Agora já não é sequer um debate político que a invasão dos EUA e a ocupação do Iraque foram um desastre ululante e um grande erro imperialista para os interesses estratégicos dos EUA. Apesar de toda a determinação para ocupar o Iraque com 14 bases militares permanentes, o exército de ocupação dos EUA foi forçado a se retirar face à feroz resistência nacional iraquiana.

Bush estava no convés do porta-aviões estadunidense Lincoln no fatídico maio de 2003, com uma faixa de "missão cumprida" atrás, para declarar o fim da guerra. Mas o que os EUA, inchados na sua arrogância imperialista, não previu era que a resistência tinha apenas começado.

Estrategistas norte-americanos, tão cheios de vaidade sobre suas poderosas armas, ignoraram a mensagem exibida em cartazes, outdoors e manchetes de todos os jornais do Iraque. Estava até na manchete de um jornal de língua inglesa de lá, quando este repórter estava no Iraque com uma delegação de solidariedade algumas semanas antes do "choque e pavor" caudado pelo ataque estadunidense.

O slogan muitas vezes repetido foi: "O que as selvas no Vietnã representaram em sua resistência, as cidades do Iraque serão para nós."

O governo iraquiano abriu os armazéns e distribuiu seis meses de rações alimentares para a população antes da guerra. Cada pacote tinha a frase: "Lembre-se de alimentar um lutador da resistência." Armas de pequeno calibre, explosivos e instruções simples para fazer dispositivos explosivos improvisados foram distribuídas publicamente.

Em última análise, o poder corporativo dos EUA foi derrotado no Iraque, devido à sua incapacidade de ser uma força para o progresso humano em qualquer nível. Foi incapaz de realizar uma reconstrução.

A força avassaladora das armas dos EUA foi capaz de destruir as realizações mais expressivas da soberania iraquiana de décadas passadas e inflamar velhas feridas sectárias. Mas foi incapaz de derrotar a resistência iraquiana ou até mesmo ganhar a votação de um acordo de forças em um Parlamento iraquiano que os próprios planejadores norte-americanos criaram.

A não-cobertura da imprensa estadunidense

Na cobertura do 10 º aniversário, a mesma mídia que vendeu a guerra recontou a decisão criminosa de invadir e ocupar o Iraque apenas como inteligência equivocada ou informação errada. Ao mesmo tempo em que lavam as mãos sobre as oportunidades perdidas e a falta de previsão, eles dão uma rápida saudação aos 4.448 soldados norte-americanos que morreram e os 32.221 feridos. Pelo menos 3.400 trabalhadores contratados norte-americanos morreram, um número quase não mencionado ou subnoticiado.

Mais de 1,1 milhão de soldados norte-americanos serviram no Iraque. O Conselho Nacional de Deficiência diz que até 40 por cento dos veteranos das guerras no Iraque e no Afeganistão sofrem de stress pós-traumático e lesão cerebral traumática.

A invasão do Iraque pelos EUA foi a guerra mais ampla e detalhadamente relatada na história militar. No entanto, a enormidade do crime cometido contra o povo iraquiano, as centenas de milhares de mortes silenciosas da falta de infra-estrutura médica, os milhões de refugiados, a catástrofe ambiental, os resíduos radioativos e químicos deixados para trás foram ignorados na cobertura de então e hoje são ignorados.

No início da guerra, em março de 2003, 775 repórteres e fotógrafos foram registrados e viajaram como jornalistas incorporados. O número cresceu para milhares de pessoas. Esses repórteres assinaram contratos com os militares que limitavam o que eles eram autorizados a relatar.

Por isso não deve ser nenhuma surpresa que estão completamente ausentes da cobertura a responsabilidade pela destruição calculada do Iraque, a corrupção massiva e a pilhagem sistemática, ou a política consciente de inflamar o ódio sectário e a violência como uma tática para desmoralizar a resistência.

Estatísticas não podem transmitir a perda humana. Uma em cada quatro crianças iraquianas com menos de 18 anos perderam um ou ambos os pais. Em 2007, foram 5 milhões de órfãos iraquianos, de acordo com estatísticas oficiais do governo. Em 2008, apenas 50 por cento das crianças em idade escolar primária estavam frequentando as aulas. O Iraque, que tinha a menor taxa de analfabetismo na região, foi reduzido a ter a mais alta. As mulheres sofreram as maiores perdas em educação, profissões, atendimento infantil, alimentação e em sua própria segurança na ocupação brutal.

De acordo com dados do Alto Comissariado da ONU para os Refugiados, existem hoje 2,7 milhões de iraquianos deslocados internamente e 2,2 milhões de refugiados, a maioria em estados vizinhos. Mais de um quarto da população do Iraque foi morta, tem alguma deficiência ou foi deslocada como refugiada devido aos anos de ocupação dos EUA. Isto não é libertação.

Falta nas muitas avaliações do 10o aniversário o contexto histórico essencial. A guerra de 2003 foi uma continuação da guerra de 1991 para destruir o Iraque como nação soberana com o controle de seus próprios recursos. Há apenas uma menção da destruição seletiva em 1991 de água potável, saneamento, esgotos, irrigação, comunicações e instalações da indústria farmacêutica, assim como a rede elétrica civil e o abastecimento de alimentos básicos. Hoje foi apagada toda e qualquer menção aos 13 anos sanções impostas ao Iraque pelos EUA / ONU de 1990 a 2003, que causaram a morte, por fome e doença, de mais de 1 milhão de iraquianos, mais da metade deles crianças.

Apesar do estrago horrendo, o fracasso das sanções dos EUA / ONU na criação de um colapso total no Iraque obrigou o poder corporativo dos EUA a optar por uma invasão militar para impor uma mudança de regime.

Segundo aniversário das guerras na Líbia e na Síria

Nas avaliações da invasão estadunidense ao Iraque, também falta mencionar que esta é uma semana do aniversário de duas outras guerras.

19 de março é o segundo aniversário da guerra dos EUA / OTAN sobre a Líbia - os sete meses de bombardeios que destruíram as cidades modernas e bonitas, escolas, hospitais e centros culturais construídos com a estrutura petrolífera nacionalizada e o gás da Líbia. A operação da OTAN assassinou o líder líbio Muamar Kadafi em 2011 e devastou todo o país. Mas ainda não conseguiu assentar uma fonte estável de lucros para os EUA.

15 de março é o segundo aniversário do esforço contínuo dos EUA / OTAN para desestabilizar e destruir totalmente uma Síria moderna e secular.

Apesar do apoio e financiamento às monarquias feudais corruptas da Arábia Saudita e Kuwait pelos EUA / OTAN, apoio diplomático, armamento dos esquadrões da morte e mercenários, e criação de refúgios e bases na Turquia, o governo sírio tem mobilizado a população e resistiu a outra mudança de regime orquestrada pelos EUA. O conflito está em um impasse. O número de mortos já passou de 70.000.

A opção Salvador: terror em massa

A mais clara evidência de que os anos de violência sectária no Iraque depois da invasão dos EUA, os assassinatos por esquadrões da morte, campanhas de terror em massa e o uso angustiante de tortura por unidades de comando foram atos deliberados treinados, sancionados e desenvolvidos no mais alto nível do comando político e militar dos EUA foi publicada na semana de 18 de março no Guardian de Londres, acompanhada de um documentário da BBC. A exposição foi baseada em 18 meses de pesquisa.

A exposição menciona nomes como o do coronel James Steele, um veterano aposentado das Forças Especiais, que foi enviado ao Iraque pelo então secretário da Defesa, Donald Rumsfeld, para organizar paramilitares de modo a esmagar a insurgência iraquiana. Outro assessor especial, o coronel aposentado James Coffman, trabalhou ao lado de Steele e se reportava diretamente ao general Petraeus.

Esta política dos EUA de contra-insurgência foi chamada de "opção Salvador" - um modelo terrorista de assassinatos em massa por esquadrões da morte patrocinados pelos EUA. Foi aplicada pela primeira vez em El Salvador no auge dos anos 1980 contra a resistência a uma ditadura militar, resultando em um número estimado de 75.000 mortes. Um milhão de uma população de 6 milhões tornaram-se refugiados.

A opção Salvador é o princípio central da muitas vezes elogiada estratégia de contra-insurgência do general David Petraeus no Iraque e no Afeganistão.

Pesquisadores do Guardian analisaram uma série de documentos do Wikileaks e reuniram um grande número de denúncias de tortura praticada pelas milícias treinadas e apoiadas pelos EUA no âmbito deste programa. A BBC e o Guardian atestam que os seus pedidos para que os principais membros do Comitê de Serviços Armados do Senado dos EUA, que poderia investigar as acusações, comentassem foram recusados ou ignorados.

Mas, em Samarra, uma cidade iraquiana, onde iraquianos foram torturados em uma biblioteca e foco do documentário da BBC, os moradores realizaram manifestações em massa contra o governo e planejaram criar telas grandes na praça central para exibir o filme.

"Choque e Pavor" = terror

Desde o início da preparação para a guerra, os planos dos EUA foram calculados para usar as formas mais extremas de terror contra o povo iraquiano de modo a forçar a submissão à dominação dos EUA. "Choque e pavor" é terrorismo por outro nome.

"Choque e pavor" é tecnicamente conhecido como dominação rápida. Por sua própria definição, é uma doutrina militar que usa o poder esmagador e espetaculares demonstrações de força para paralisar e destruir a vontade de lutar. Escrito por Harlan Ullman K. e James P. Wade, em 1996, a doutrina é um produto da National Defense University, desenvolvida para explorar a "tecnologia superior, o engajamento de precisão e domínio da informação" dos Estados Unidos.

Esta bem conhecida estratégia militar exige a capacidade de perturbar "os meios de comunicação, transporte, produção de alimentos, abastecimento de água e outros aspectos da infra-estrutura." De acordo com esses criminosos estrategistas militares, o objetivo é atingir um nível de choque nacional semelhante ao efeito do lançamento das armas nucleares sobre Hiroshima e Nagasaki.

Aproveitadores da guerra

O saque e a pilhagem do Iraque em grande escala também foram planejados desde o início. Não era um acidente, uma política equivocada ou a névoa da guerra.

O funcionário, que tinha total autoridade no Iraque imediatamente depois da destruição pelo "choque e pavor", chefe da autoridade de ocupação no Iraque, Paul Bremer III, promulgou 100 medidas que transformaram o Iraque do dia para a noite em um grande livre mercado capitalista dependente. As 100 medidas garantiram que os investidores estrangeiros fossem proprietários de 100 por cento dos ativos iraquianos, além de garantir o direito de explorar todos os lucros, realizar importações sem restrições e acordos e arrendamentos de longo prazo – de 30 a 40 anos. Na reviravolta oficial da soberania iraquiana, essas ordens coloniais chegaram para ficar.

Bilhões foram logo roubados do Iraque. De acordo com Dirk Adriaensens do Tribunal BRussells, os administradores norte-americanos, como "autoridades" da ocupação, confiscaram todos os bens e fundos iraquianos no mundo inteiro – totalizando US$ 13 bilhões. Eles apreenderam todos os fundos iraquianos nos EUA (US$ 3 bilhões). Transferiram os fundos da conta UBS iraquiana (banco suíço) para as forças estadunidenses. Eles exigiram e receberam os fundos acumulados até março de 2003 pelo programa da ONU Petróleo-por-comida (cerca de US$ 21 bilhões)

Nas primeiras semanas de ocupação, as tropas ianques se apoderaram de cerca de 6 bilhões de dólares, bem como US$ 4 bilhões do Banco Central e de outros bancos iraquianos. Eles recolheram o dinheiro em edifícios especiais do governo em Bagdá.

Para onde todos esses recursos vão? Em vez de criar uma conta no Banco Central do Iraque para depositar esses fundos, bem como os fundos de exportação de petróleo, as autoridades de ocupação criaram a conta "Fundo de Desenvolvimento para o Iraque" no American Central Bank, New York Branch, onde todas as operações financeiras são realizadas em segredo. "Faltam" cerca de US$ 40 bilhões de um fundo pós-Guerra do Golfo.

Segundo a BBC, em 10 de junho de 2008, outros US $ 23 bilhões em fundos de ajuda do Ocidente para o Iraque foram perdidos, roubados ou "não devidamente contabilizados". Abundam histórias dos milhões de dólares em notas de US$ 100 que desapareceram em patins nos aeroportos e caixas de pizza e sacos de lã cheios de dinheiro.

De acordo com a BusinessPundit.com da lista dos 25 mais cruéis aproveitadores da guerra, esses fundos roubados foram apenas o início da partilha do espólio. Grandes corporações dos EUA registraram lucros recordes. Nos anos de 2003 a 2006, os lucros e os ganhos dobraram para a Exxon / Mobil Corp e ChevronTexaco.

KBR Halliburton, Inc., que estava diretamente ligada ao vice-presidente Cheney, ludibriaram as agências governamentais no montante de US $ 17,2 bilhões em receita relacionada à guerra do Iraque só de 2003 a 2006.

O custo da guerra

O prêmio Nobel Joseph E. Stiglitz calculou o custo da guerra do Iraque, incluindo os muitos custos ocultos, em seu livro de 2008, "A guerra de três trilhões de dólares". Ele concluiu: "Assim como não existe algo como um almoço grátis, não há tal coisa como uma guerra livre. A aventura do Iraque enfraqueceu seriamente a economia dos EUA, cujos problemas agora vão muito além do desenfreado crédito hipotecário. Você não pode gastar US$ 3 trilhões - sim, US$ 3 trilhões - em uma guerra fracassada no exterior e não sentir a dor em casa".

Stiglitz lista até que um destes trilhões poderia ter sido pago para: 8 milhões de unidades habitacionais, ou 15 milhões de professores de escolas públicas, ou cuidados de saúde de 530 milhões de crianças por um ano, ou bolsas de estudo para universidades para 43 milhões de alunos. Três trilhões poderiam ter corrigido o chamado problema de Segurança Social nos EUA por meio século.

De acordo com um relatório do Christian Science Monitor, quando são incluídos o tratamento médico contínuo, veículos de substituição e outros custos, o gasto total com a guerra no Iraque é projetado em US$ 4 trilhões. (25 de outubro de 2012)

Resistência popular e movimento anti-guerra

Os meios de comunicação desempenham outro papel importante em reescrever a história. Seu objetivo é sempre fazer o possível para marginalizar e depreciar a consciência de milhões de pessoas.

Enquanto o ataque de "choque e pavor" de 19 de março de 2003 ainda hoje é descrito, é raro ver qualquer referência nos grandes meios de comunicação às manifestações verdadeiramente maciças, que atraíram milhões de pessoas para as ruas, de oposição à guerra então iminente. Calcula-se que, antes da guerra, mais de 36 milhões de pessoas em mais de 3.000 manifestações mobilizaram-se internacionalmente para se opor – nos dois meses mais frios do inverno. Isso foi algo sem precedentes.

No Iraque, apesar da força esmagadora do "choque e pavor", o uso planejado da guerra sectária e o uso em massa de esquadrões da morte – apesar da destruição de cada realização construída por gerações passadas, juntamente com a destruição de escolas e confisco de recursos - a guerra dos EUA fracassou em todos os aspectos. Apesar das condições horrendas, a resistência iraquiana expulsou a ocupação do Iraque. Esta é uma realização de grande significado para os povos em todo o mundo.

Monday, March 25, 2013

Hu Jintao: década dourada ou década perdida?


por Xulio Rios, traduzido por Vinicius C. para o Batalha de Ideias.

Na despedida a Hu Jintao, da tribuna da Assembléia Popular Nacional (APN), Xi Jinping elogiou o trabalho de seu predecessor. O já ex-secretário geral do PCCh, de 71 anos de idade, encerrava uma longa trajetória iniciada nos anos oitenta depois de subir cada um dos degraus do poder desde sua etapa na Liga da Juventude Comunista.

No momento de fazer um balanço, é possível dizer que sua etapa como secretário geral do PCCh (2002-2012) teve mais luzes que sombras. Os que chamam esta década de “perdida” fazem-no sobretudo desqualificando sua disposição a introduzir reformas econômicas –não tanto de outro tipo, já sejam políticas ou sociais- argumentando um retrocesso nas dinâmicas de mercado a favor do intervencionismo público. E é verdade que durante o mandato de Hu Jintao se perfilou com clareza uma aposta bem precisa a favor do controle público dos setores estratégicos da economia do país. Os principais âmbitos (transportes, finanças, comunicações, energia, etc.), o coração da economia, ficava significativamente fora do alcance do setor privado ou com uma presença nele pouco expressiva. Indubitavelmente, esta situação proveio de grandes capacidades para contornar os efeitos da crise financeira e econômica internacional. Esse modelo evitou a subalternização ao serviço de interesses pouco edificantes, sejam nacionais ou internacionais. A economia chinesa seguiu crescendo de forma espetacular em condições realmente adversas, passando a ser a segunda economia do mundo depois de gerenciar com inquestionável sucesso o ingresso na OMC.

Por outra parte, deveríamos considerar que se Xi Jinping e Li Keqiang podem desenvolver desde o primeiro momento uma ambiciosa reforma do aparelho burocrático –com implicações políticas, econômicas e sociais- como a aprovada por esta APN é porque durante o mandato de Hu Jintao se avançou na definição da rota a seguir e que agora se aplicará ao longo do presente lustro.

As sombras maiores da década de Hu Jintao não são essas. Entre elas é preciso mencionar os escassos avanços atingidos em áreas que pretendiam ser bandeiras de seu mandato, como o objetivo de uma justiça social elementar, a luta contra a corrupção ou a incapacidade para oferecer respostas inovadoras aos problemas das nacionalidades minoritárias. Os graves problemas ambientais ou as controvérsias demográficas têm posto em questão a sensibilidade governamental e sua capacidade para arbitrar respostas eficientes.

A intensificação do processo urbanizador provocou uma mudança radical. Pela primeira vez na história chinesa, a população urbana superou a rural (52,5% em 2012) ainda que 30% da população assentada nas cidades conservem o hukou do campo. São quase 300 milhões de pessoas que aguardam respostas inclusivas que não serão fáceis nem baratas (a CASS estimou em 7.000 euros o valor da inclusão da cada imigrante do campo). Os programas sociais em torno da harmonia ficaram insuficientes, dada a profundidade do abismo gerado em décadas de desenvolvimento sem justiça.

A projeção internacional da China foi grande, consumando-se nos Jogos Olímpicos de 2008 e na Expo Xangai de 2010 como grandes vitrines, mas nutrindo-se de um prolongamento de sua presença nos cinco continentes. Também na ordem da defesa, com um aumento significativo das dotações orçamentárias, que se multiplicaram por mais de seis, reforçadas com desenvolvimentos tecnológicos de crescente relevância. A combinação de expansão e incremento da presença lançaram as bases de um novo tempo diplomático que seus sucessores deverão gerenciar tratando de apaziguar os focos de tensão que se multiplicaram recentemente em seu entorno imediato.

Inclusive no político, o impulso ao debate sobre a democratização abre a esperança de uma inovação que transcenda o administrativo. Seus contornos são apenas um esboço e seus limites parecem inamovíveis, mas a consciência da necessidade de construir novas bases de legitimidade que ultrapassem o histórico ou o econômico em um contexto de despertar social crescente sugere horizontes de maior inovação.

A China de Hu Jintao, em suma, iniciou uma viragem decisiva na conformação do processo de mudança, assentando as bases de sua transformação final, clarificando os conteúdos que devem primar no novo modelo de desenvolvimento e identificando os problemas de uma agenda necessariamente mais equilibrada que exigem soluções sem dilação sob o risco de intensificar a desigualdade, os conflitos sociais e a instabilidade.

Diferentemente de Jiang Zemin, Hu Jintao mostrou escasso interesse em manter uma influência pessoal no poder mesmo que promovendo seus correligionários seja no Comitê Permanente ou no Bureau Político ou em escala provincial e sua eleição condicionará o viés da liderança a partir de 2017 e 2022. Seu grande mérito neste sentido é abrir passo a uma institucionalidade que, na ausência de grandes líderes veteranos, determine regras precisas para facilitar as mudanças no poder, evitando crises traumáticas que arruínem tanto esforço e preservando a unidade interna.

Xulio Rios é diretor do Observatório da Política Chinesa e autor de China pede passo. De Hu Jintao a Xi Jinping (Icaria editorial).

Tuesday, March 19, 2013

De Bergoglio a Francisco



por Atilio Boron,  diretor do Programa Latino-americano de Educação à Distância em CiênciasSociais (PLED), Buenos Aires, Argentina. Traduzido por Vinicius C. para o Batalha de Ideias.

Pouco pode ser agregado ao muito que já se disse sobre o Papa Francisco desde sua surpreendente elevação ao trono de São Pedro. Tratarei de sintetizar esta breve nota em torno de três eixos: (a) as acusações sobre sua atuação durante a ditadura cívico-militar genocida; (b) sua política como Arcebispo de Buenos Aires e presidente da Conferência Episcopal; (c) o possível impacto de seu pontificado sobre a realidade sócio-política da América Latina.

Em relação ao primeiro ponto é indiscutível que sua conduta se enquadrou, em termos gerais, nas deploráveis linhas estabelecidas pela hierarquia católica. Não foi um monstro como Christian von Wernich, ativo participante na comissão de delitos de lesa humanidade e por isso condenado pela justiça argentina; ou um troglodita medieval como o bispo castrense Antonio Basseoto, que propôs que se pendurasse uma pedra de moinho no pescoço do Ministro da Saúde Ginés Gonzales García e que se o atirasse ao mar por ter recomendado a utilização de preservativos. Tampouco foi uma instância cristã como os casos dos monsenhores Enrique Angelelli e Carlos Horacio Ponce de León, o Pai Carlos Mugica, os sacerdotes palotinos ou as freiras francesas Léonie Duquet e Alice Domon, todos assassinados pela ditadura; ou como os monsenhores Miguel Hesayne, Jorge Novak e Jaime de Nevares, duros críticos do regime militar. O então provincial da Companhia de Jesus teve uma conduta reprovável em relação a dois de seus subordinados diretos, os sacerdotes Francisco Jalics e Orlando Virgilio Yorio, quem exerciam seu trabalho pastoral em uma vila do Bajo Flores e foram sequestrados e torturados pela ditadura diante da inação de seu superior que os privou de sua proteção. Alguns depoimentos, como o de Alicia Oliveira, recusam estas críticas assinalando sua ativa colaboração para salvar a vida dos clérigos e laicos em perigo. Mas a evidência documental -que não é o mesmo que uma opinião- aportada nestes dias por Horacio Verbitsky ao Página/12 ou o que escreveu um eminente católico como Emilio F. Mignone qualificam-no como um pastor que entregou “suas ovelhas ao inimigo sem as defender nem as resgatar”, em um caso ao menos de um neto que foi apropriado pelos repressores mantendo oculta esta informação por anos. O mais provável é que ambas atitudes sejam verdadeiras, mas os bons gestos destacados por alguns não são suficientes para contrastar a gravidade dos outros. Em um país no qual todos sabiam dos crimes perpetrados pelo terrorismo de estado não é possível alegar ignorância, muito menos um sacerdote que administrava o sacramento da confissão e em permanente contato com a maioria das pessoas. Em seu momento Bergoglio pediu perdão em nome da Igreja “por não ter feito o suficiente" para preservar os direitos humanos ante a barbárie do terrorismo de estado; deveria tê-lo pedido, em vez disso, pelo explícito apoio que a hierarquia eclesiástica deu aos genocidas e não pelo pouco que fez para combatê-los. Neutralidade ou tolerância ante o terrorismo de estado? Hum!, recordemos o que diz Dante na Divina Comédia: “o círculo mais horrendo do inferno está reservado aos que em tempos de crise moral optam pela neutralidade.”

Mas suponhamos que um exame exaustivo e imparcial aponte a absoluta inocência de Bergoglio nos anos de chumbo. Que podemos dizer de sua atuação durante a reconstituição democrática posterior à ditadura? No sentido da contra-reforma lançada por João Paulo II com o apoio e beneplácito de Ronald Reagan e Margaret Thatcher, Bergoglio associou-se às tendências mais reacionárias da igreja argentina, o que não é pouco dizer. Formado no peronismo de direita, militante da Guarda de Ferro em sua juventude, durante seu gerenciamento como Cardeal Primado da Argentina se alinhou inequívoca e sistematicamente na contramão de todas as boas causas: opôs-se –sem sucesso- ao casamento igualitário; reagiu com o furioso fanatismo de Tomás de Torquemada ante a mostra do artista plástico León Ferrari, que teve que ser retirada antes de tempo; tem combatido com ferocidade tudo relacionado à educação sexual, o controle da natalidade, a descriminalização do aborto e os direitos das minorias sexuais; mantém dentro da Igreja, e assim lhes estende sua proteção, criminosos como Von Wernich, Edgardo Storni e Julio César Grassi (condenados estes dois últimos por pedofilia); atenta contra o caráter laico do estado democrático e defende com enjundia as mordomias que tem a Igreja em matéria financeira e no controle sobre o processo educacional, em aberta violação ao disposto pela Constituição de 1994. Em conclusão, um papa austero e afastado do boato do Vaticano com uma marcada preocupação pela sorte dos pobres, mas profundamente conservador. Isto é inovador? Em nada. O conservadorismo popular tem longa história, e não só na América Latina. Diferentemente de sua variante elitista e aristocratizante, os valores e interesses tradicionais que sustentam uma ordem social injusta se reforçam aproveitando da ignorância e credulidade dos grupos populares ganhados pela prédica eclesiástica. É um conservadorismo plebeu, excêntrico em suas formas, mas que presta um valioso serviço às classes dominantes, como o prova a obscena explosão de júbilo dos genocidas nos julgados quando se conheceu a designação de Bergoglio como pontífice; ou a desbordante alegria das mais diversas expressões e variados representantes da direita argentina; ou a fenomenal campanha apologética dos jornais da burguesia e do império –principalmente Clarín e La Nación, este último marcando a penosa involução moral de um jornal fundado por Bartolomé Mitre, maçom provado e confesso- ante as notícias procedentes de Roma. Com semelhantes amigos, como achar que Francisco vai imitar ao santo de Assis, cuja renúncia à riqueza e aos bens materiais foi total e absoluta? Em companhia destes ricos confrades, a “opção pelos pobres” dificilmente pode ser algo mais que um longínquo acompanhamento de seus sofrimentos e privações, mas tratando de ensinar-lhes quem é que os condena a transitar por este vale de lágrimas, padecimentos e infortúnios. Faz quase meio século que Dom Helder Câmera, bispo de Olinda e Recife explicou muito bem esta contradição: "Se dou de comer aos pobres, dizem que sou um santo. Mas se pergunto por que os pobres passam fome e estão tão mal, dizem que sou um comunista." Não basta a humildade nem a confraternização com os pobres: trata-se de lhes ensinar que a pobreza não é resultado de um desígnio divino ou de um capricho da natureza mas um produto histórico da sociedade capitalista, máquina implacável de fabricar pobreza e miséria e à qual a Igreja jamais teve a ousadia de condenar apesar de sua intrínseca malignidade. Dos ditos e dos fatos de Francisco não se depreende que isto vá ocorrer. É bom que o escravo se rebele contra seu amo, mas como dizia Lenin, a mudança só se produzirá quando aquele se rebele contra a escravatura, contra o sistema e não só contra um de seus agentes. Alentará Francisco a rebelião anticapitalista dos pobres, dado que dentro do capitalismo sua sorte está jogada? Nada em sua biografia autoriza a pensar nesse curso de ação; o mais provável será que estimule sua mansidão e eternize seu submissão. É que a “opção pelos pobres” da Igreja que surge da contra-reforma liderada por João Paulo II e que varreu com os avanços do Concilio Vaticano II não é a que propunha a Igreja de Carlos Mugica, Jaime de Nevares, Miguel Hesayne, Oscar Arnulfo Romero (Arcebispo de San Salvador), Sergio Méndez Arceo (Bispo de Cuernavaca, México), Samuel Ruiz García (Bispo de San Cristóbal, Chiapas), Pedro Casaldáliga e Dom Helder Câmera (Brasil) e Ernesto Cardeal (Nicarágua) ou, em nossos dias, os teólogos da libertação como Frei Betto, Leonardo Boff, Gustavo Gutiérres ou Jon Sobrino.

Será seu pontificado uma remake do de João Paulo II? É muito pouco provável. O Papa Wojtila foi um produto de finais dos setentas, quando o mundo era muito diferente ao de hoje. Foi o aríete que a burguesia imperial precisava para derrubar a União Soviética e os países do Leste Europeu. Mas essa estratégia foi eficaz porque aqueles regimes padeciam de um avançado estado de decomposição moral, política, econômica e social. Na realidade, João Paulo limitou-se a desencadear a investida final a um imenso edifício que já se vinha abaixo produto de suas próprias contradições. Hoje o mundo mudou muito: o imperialismo já não tem, tal como reconhecem seus próprios intelectuais orgânicos, a gravitação do passado. Os rivais são mais numerosos e diversificados, e economicamente bem mais fortes que a URSS e os países de Europa Oriental. Seus aliados, ademais, são mais débeis e vacilantes. A Igreja, por sua vez, viu-se debilitada por uma interminável sucessão de escândalos e carece da credibilidade que ganhara nos anos de João XXIII. Ademais, se quisesse lançar todo seu peso para desestabilizar os processos bolivarianos na Venezuela, Bolívia e Equador ou as experiências de transformação política em curso em outros países da região a resposta seria muito diferente a que há mais de trinta anos se verificou no Leste europeu. Aqui, trata-se de processos que contam com um enorme apoio popular que nem remotamente existia lá, e portanto o projeto das direitas latino-americanas – organizadas, orientadas e financiadas pelo império- de reutilizar o aríete eclesiástico que tão bons resultados lhe dera na Europa Oriental para acabar com os governos progressistas e de esquerda na região terminaria em um rotundo fracasso. A “revolução de veludo” da Tchecoslováquia não tem qualquer relação com a revolução bolivariana da Venezuela, Evo Morales não é Lech Valesa, e Correa não é Ceacescu. Não só os processos e a época histórica são diferentes: os enormes problemas que enfrenta hoje a Igreja (crise financeira, delitos econômicos do Banco Vaticano, alianças com mafiosos, pedofilia e seus julgamentos, o celibato sacerdotal, a incorporação da mulher ao sacerdócio e o postergado aggiornamiento reclamado por João XXIII) dificilmente permitirão que Francisco dedique demasiada atenção ao que ocorre nos países de Nossa América. É um bom administrador e terá que pôr a casa em ordem. É também um político muito hábil, e sabe que logo deverá convocar um Concilio que permita destravar velhas disputas que estão corroendo a Igreja e a isolando-a cada vez mais do mundo real. Há exatamente quinhentos anos Nicolau Maquiavel diagnosticava no Príncipe que para se salvar a Igreja precisava uma revolução. Tal coisa não ocorreu. Quatro anos mais tarde, em 1517, estourava a reforma protestante de Martinho Lutero, e a revolução ficou congelada. Agora, a revolução é muitíssimo mais urgente e necessária que antes. Se Francisco fracassa neste empenho a sorte das duas vezes milenária instituição se verá muito seriamente comprometida. Não se deve enganar com as cifras manejadas pela imprensa nestes dias: desses 1,2 bilhão de católicos em todo mundo os realmente praticantes são uma ínfima minoria, que ademais encolhe a cada dia. Pretender socavar os processos emancipatórios em curso na América Latina e Caribe seria uma perda de tempo, o passaporte para uma segura derrota e um esforço que desviaria o Papado de seu desafio fundamental. Talvez por isso Leonardo Boff confia que, apesar de seus antecedentes, Francisco se absterá de seguir o curso que a direita e o imperialismo lhe instam a seguir e elegerá em vez disso o caminho da reforma. Em poucos anos a história oferecerá seu veredicto.




GALEANO: GAZA


Por Eduardo Galeano, traduzido por Vinicius C. para o Batalha de Ideias


Para justificar-se, o terrorismo de Estado fabrica terroristas: semeia ódio e colhe álibis.

Tudo indica que este açougue de Gaza, que segundo seus autores quer acabar com os terroristas, acabará por multiplicá-los.

Desde 1948, os palestinos vivem condenados à humilhação perpétua. Não podem nem respirar sem permissão. Perderam sua pátria, suas terras, sua água, sua liberdade, tudo o que era seu. Nem sequer têm direito a eleger seus governantes. Quando votam a alguém em quem não devem votar, são castigados. Gaza está sendo castigada. Converteu-se em uma ratoeira sem saída, desde que o Hamas ganhou limpamente as eleições no ano de 2006. Algo parecido tinha ocorrido em 1932, quando o Partido Comunista triunfou nas eleições de El Salvador. Banhados em sangue, os salvadorenhos expiaram sua má conduta e desde então viveram submetidos a ditaduras militares. A democracia é um luxo que nem todos merecem.

São filhos da impotência os foguetes caseiros que os militantes de Hamas, encurralados em Gaza, disparam com desajeitada pontaria sobre as terras que tinham sido palestinas e que a ocupação israelense usurpou. E o desespero, à margem da loucura suicida, é a mãe das bravatas que negam o direito à existência de Israel, gritos sem nenhuma eficácia, enquanto a muito eficaz guerra de extermínio está negando, há anos, o direito
à existência de Palestina. Já pouca Palestina resta. Passo a passo, Israel está-a apagando
do mapa.

Os colonos invadem, e depois deles os soldados vão corrigindo a fronteira. As balas sacralizam o despojo, em legítima defesa. Não há guerra agressiva que não diga ser guerra defensiva. Hitler invadiu Polônia para evitar que a Polônia invadisse Alemanha.

Bush invadiu Iraque para evitar que o Iraque invadisse o mundo. Em cada uma de suas guerras defensivas, Israel abocanhou para si outro pedaço da Palestina, e os almoços seguem. A voracidade justifica-se pelos títulos de propriedade que a Bíblia outorgou, pelos dois mil anos de perseguição que o povo judeu sofreu, e pelo pânico que geram os palestinos à espreita.

Israel é o país que jamais cumpre as recomendações nem as resoluções das Nações Unidas, que nunca acata as sentenças dos tribunais internacionais, que debocha das leis internacionais, e é também o único país que legalizou a tortura de prisioneiros.

Quem lhe deu o direito de negar todos os direitos? De onde vem a impunidade com que Israel está executando a matança de Gaza? O governo espanhol não pode bombardear impunemente o País Basco para acabar com ETA, nem o governo britânico pode arrasar Irlanda para liquidar a IRA. Talvez a tragédia do Holocausto implica uma apólice de eterna impunidade? Ou esse sinal verde provém da potência mandachuva que tem em Israel o mais incondicional de seus vassalos?

O exército israelense, o mais moderno e sofisticado do mundo, sabe a quem mata.

Não mata por erro. Mata por horror. As vítimas civis são chamadas danos colaterais, segundo o dicionário de outras guerras imperiais. Em Gaza, da cada dez danos colaterais, três são crianças. E somam milhares os mutilados, vítimas da tecnologia do esquartejamento humano, que a indústria militar está ensaiando exitosamente nesta operação de limpeza étnica.

E como sempre, sempre o mesmo: em Gaza, cem a um. A cada cem palestinos mortos,
um israelense.

Gente perigosa, adverte o outro bombardeio, a cargo dos meios de manipulação em massa, que nos convidam a achar que uma vida israelense vale tanto como cem vidas palestinas. E esses meios também nos convidam a achar que são humanitárias as duzentas bombas atômicas de Israel, e que uma potência nuclear chamada Irã foi a que aniquilou Hiroshima e Nagasaki.

A chamada comunidade internacional, existe?

É algo mais que um clube de mercadores, banqueiros e guerreiros? É algo mais que o nome artístico que os Estados Unidos se põem quando fazem teatro?
Ante a tragédia de Gaza, a hipocrisia mundial revela-se uma vez mais. Como sempre, a indiferença, os discursos vazios, as declarações ocas, as declamações altissonantes, as posturas ambíguas, rendem tributo à sagrada impunidade.

Ante a tragédia de Gaza, os países árabes lavam as mãos. Como sempre. E como sempre, os países europeus esfregam as mãos.

A velha Europa, tão capaz de beleza e de perversidade, derrama uma que outra lágrima enquanto secretamente celebra esta jogada de mestre. Porque a caça aos judeus foi sempre um costume europeu, mas há meio século essa dívida histórica está sendo cobrada aos palestinos, que também são semitas e que nunca foram, nem são, antissemitas. Eles estão pagando, em sangue contado e sonante, uma conta alheia.