traduzido por Vinicius C. para o Batalha de Ideias.
Há trinta anos, em Sabra e Shatila, na periferia de Beirute, um massacre foi cometido pelas falanges maronitas contra libaneses e palestinos refugiados, sob a vigilância cúmplice de tropas israelenses.
Abaixo um trecho do livro Pobre Nação do jornalista inglês Robert Fisk que relata suas impressões do massacre:
Foram as moscas que nos contaram. Havia milhões delas, o zumbido quase tão eloquente quanto o cheiro. Do tamanho de varejeiras, elas nos cobriram, sem saber diferenciar a princípio, os vivos dos mortos. Se parávamos, escrevendo em nossos blocos de notas, elas pousavam como um exército − legiões delas −, na superfície branca do papel, nas mãos, nos braços, nos rostos, sempre juntando-se ao redor dos olhos e da boca, movendo-se de corpo para corpo, dos muitos mortos para os poucos vivos, de cadáver para repórter, seus pequenos corpos agitando-se com excitação ao encontrar carne nova para pousar e fazer um banquete.
Se não nos movíamos rapidamente, elas nos picavam. A maioria ficava em volta de nossas cabeças, numa nuvem cinza, esperando assumirmos a generosa imobilidade dos mortos. Eram prestativas, essas moscas, formando nosso único elo físico com as vítimas que jaziam perto de nós, lembrando-nos de que há vida na morte. Alguns se beneficiam. As moscas eram imparciais. Não importava nem um pouco que os corpos aqui fossem vítimas de assassinato em massa. As moscas teriam agido assim com os mortos insepultos de qualquer comunidade. Sem dúvida, foi desse jeito nas tardes quentes durante a Grande Praga.
No início, não usamos a palavra massacre. Mal falamos, porque as moscas infalivelmente voariam para dentro de nossas bocas. Pusemos lenços sobre as bocas por esse motivo, depois cobrimos também os narizes, porque os insetos moviam-se sobre nossos rostos. Se o cheiro dos mortos em Sidon era nauseante, o fedor em Chatila provoca ânsias de vômito. Mesmo com os mais grossos lenços, nós sentíamos o cheiro. Após alguns minutos, nós começamos a cheirar como os mortos.
Eles estavam por todas as partes, na rua, nas vielas, nos quintais e cômodos destruídos, embaixo de construções demolidas e sobre montes de lixo. Os assassinos − os milicianos cristãos que Israel deixara entrar nos campos para "desentocar os terroristas" − haviam acabado de partir. Em alguns casos, o sangue ainda estava molhado no solo. Quando chegamos a cem, paramos de contar os corpos. Em cada viela, havia cadáveres − mulheres, homens jovens, bebês e avós − caídos juntos em desordenada e terrível profusão, no local onde tinham sido esfaqueados ou metralhados. Cada corredor em meio aos destroços apresentava mais corpos. Os pacientes de um hospital palestino desapareceram depois que os pistoleiros ordenaram aos médicos para saírem. Em todos os cantos, encontramos sinais de covas coletivas escavadas apressadamente. Talvez mil pessoas tenham sido chacinadas; provavelmente 1.500.
Mesmo enquanto estávamos lá, em meio às evidências de tanta selvageria, podíamos ver os israelenses nos observando. Do alto da torre a oeste − o segundo edifício na Avenue Camille Chamoun −, era possível vê-los olhando para nós com binóculos, examinando de um lado para outro as ruas cheias de cadáveres, as lentes às vezes refletindo a luz do sol enquanto vasculhavam o campo. Loren Jenkins praguejou um bocado. Eu imaginei que provavelmente era seu jeito de controlar as sensações de náusea no meio do fedor terrível. Todos nós queríamos vomitar. Nós estávamos respirando morte, inalando a putrescência dos corpos inchados em volta. Jenkins imediatamente deu-se conta de que o ministro da Defesa israelense é quem teria que arcar com alguma responsabilidade por esse horror. "Sharon!", ele gritou. "Aquele filho-da-puta do Sharon! Isso é a repetição de Deir Yassin."
O que encontramos dentro do campo palestino de Chatila às dez da manhã de 18 de setembro de 1982 é inacreditável demais para se descrever, embora talvez fosse mais fácil recontar na prosa fria de um relatório médico. Já haviam acontecido massacres no Líbano, mas raramente nessa escala e jamais sob as vistas grossas de um exército regular e supostamente disciplinado. No pânico e ódio da batalha, dezenas de milhares foram mortos neste país. Mas essas pessoas, centenas delas, foram abatidas desarmadas. Isso era um assassinato em massa, um incidente − com que facilidade usávamos a palavra "incidente" no Líbano − que também era uma atrocidade. Ia muito além até mesmo do que os israelenses teriam chamado, em outras circunstâncias, de uma atrocidade terrorista. Era um crime de guerra.
Jenkins, Tveit e eu ficamos tão estupefatos pelo que encontramos em Chatila que, no começo, não conseguimos registrar nosso próprio choque. Bill Foley, da AP, viera conosco. Tudo o que ele dizia enquanto andava ao redor era "Jesus Cristo!", repetidas vezes. Nós talvez tivéssemos conseguido aceitar as evidências de uns poucos assassinatos; até mesmo dezenas de corpos, mortos no calor do combate. Mas havia mulheres jogadas em casas com suas saias rasgadas até a cintura e as pernas bem abertas, crianças com as gargantas cortadas, filas de homens jovens com tiros nas costas após terem sido alinhados diante de um muro de fuzilamento. Havia bebês − bebês enegrecidos, porque tinham sido chacinados havia mais de 24 horas e seus pequenos corpos já estavam em estado de decomposição − jogados em monturos junto a latas descartadas de ração dos EUA, equipamentos médicos do exército israelense e garrafas vazias de uísque.
Onde estavam os assassinos? Ou, para usar o vocabulário dos israelenses, onde estavam os "terroristas"? Quando fomos de carro para Chatila, vimos os israelenses no alto dos prédios residenciais na Avenue Camille Chamoun, mas eles não fizeram nenhuma tentativa de deter-nos. Na verdade, nós fomos primeiros para o campo de Bourj al-Barajneh, porque alguém nos disse que havia acontecido um massacre lá. Tudo o que vimos foi um soldado libanês perseguindo um ladrão de carro em uma rua. Só quando estávamos voltando, passando diante da entrada de Chatila, é que Jenkins decidiu parar o carro. "Não estou gostando disso", ele disse. "Onde está todo mundo? Que porra de cheiro é esse?"
Bem na entrada sul do campo costumava haver algumas casas térreas de concreto. Eu fizera muitas entrevistas dentro desses casebres no fim dos anos 1970. Quando andamos pela entrada lamacenta de Chatila, descobrimos que essas construções tinham sido dinamitadas. Havia cartuchos de balas espalhados pela rua principal. Vi diversos cartuchos de sinalizadores israelenses, ainda presos aos seus pequenos paraquedas. Nuvens de moscas sobrevoavam os destroços, atacando com determinação as pessoas.
Numa ruela à direita, a não mais de cinquenta metros da entrada, tinha uma pilha de cadáveres. Havia mais de uma dúzia deles, rapazes cujos braços e pernas emaranhavam-se na agonia da morte. Todos tinham recebido tiros à queima-roupa no rosto, a bala rasgando uma linha de carne até a orelha e entrando no cérebro. Alguns tinham cicatrizes pretas ou rubras no lado esquerdo das gargantas. Um fora castrado, a calça rasgada e um monte de moscas pulsando sobre o ventre exposto.
Os olhos desses jovens estavam abertos. O mais novo teria apenas doze ou treze anos. Eles vestiam jeans e camisas coloridas, a roupa absurdamente justa sobre a carne, agora que os corpos tinham começado a inchar no calor. Eles não foram roubados. Num pulso enegrecido, um relógio suíço marcava a hora correta, o ponteiro dos segundos ainda andando inutilmente, gastando as últimas energias do seu dono morto.
No outro lado da rua principal, numa trilha pelos escombros, encontramos os corpos de cinco mulheres e várias crianças. As mulheres eram de meia-idade e seus cadáveres estavam jogados sobre um monte de pedras. Uma estava caída de costas, a saia rasgada e a cabeça de uma menininha saindo debaixo dela. A criança tinha cabelos negros encaracolados e curtos, seus olhos nos encaravam e as sobrancelhas estavam franzidas. Ela estava morta.
Outra menina jazia na rua como uma boneca descartada, seu vestido branco manchado com lama e poeira. Ela não devia ter mais de três anos. A parte de trás da cabeça fora destruída por uma bala disparada contra o seu cérebro. Uma das mulheres segurava um bebezinho junto ao corpo. A bala atravessara seu peito e também matara o nenê. Alguém havia cortado o ventre da mulher, horizontalmente e depois para cima, talvez tentando matar a criança não nascida. Seus olhos estavam arregalados, o rosto escurecido congelado em horror.
É possível ter acesso ao livro no site: http://books.google.com.br/ books?id=acghphFi2pgC& printsec=frontcover&hl=pt-BR& source=gbs_ge_summary_r&cad=0# v=onepage&q&f=false