Eduardo Krajni, para o Batalha de Ideias.
PARTE I
A sucessão dos
últimos acontecimentos na Ucrânia se dá numa velocidade tal, que
quem queira escrever sobre os mesmos deve fazê-lo rápido. A
presteza do reconhecimento dos acontecimentos, no entanto, pode
resultar numa análise superficial, que deixa de considerar alguns
elementos importantes quando se pensa no maior país do leste
europeu. Algumas análises demasiado simples andam a circular,
apresentando o problema ucraniano como apenas uma questão externa,
colocando a Ucrânia como a metade do cabo de guerra entre as
potências da OTAN (EUA, Alemanha e Polônia, principalmente) e a
Rússia. Certamente a influência e a confluência de diferentes
interesses extrenos aos interesses da classe trabalhadora ucraniana
estão no centro do jogo. Não se pode, no entanto, tratar a questão
de maneira reducionista, de forma a esquecer ou desconsiderar a luta
pelo aparato político-econômico dentro das frações de classe da
burguesia ucraniana que permitiu
que a crise aflorasse e fosse capitaneada pelos interesses de
diferentes setores do capital financeiro internacional.
Uma análise desde
o materialismo histórico deve levar em conta fatores diversos, e que
por sua complexidade dificilmente poderão ser abarcados em sua
totalidade neste artigo (já extenso e divido em duas partes) e que
precisa, pela velocidade dos acontecimentos, ser publicado para
esclarecer algumas coisas aos interessados em olhar a situação
desde a perspectiva da classe trabalhadora.
Tentaremos, no
entanto, elucidar alguns pontos que julgamos imprescindíveis para a
compreensão dos acontecimentos, passados e futuros. Em primeiro
lugar, deve-se dizer que a Ucrânia é um estado nacional
pós-soviético, ou seja: um estado onde o projeto político e
econômico da classe operária no Leste Europeu (o socialismo
soviético) foi derrotado pelo mesmo golpe contrarrevolucionário que
teve consequências catastróficas para todos os povos oprimidos do
mundo. A classe operária soviética (da qual a ucraniana formava
parte intrínseca) foi desorganizada, seus quadros dirigentes
ostracizados e seu partido político, “aburguesado”. No plano
econômico deve-se levar em conta a reestruturação industrial
completa da Ucrânia levada a cabo pela nova burguesia, que levou um
país praticamente auto-suficiente à condição de exportador de
matérias-primas e suplementos industriais, segundo os interesses do
imperialismo.
I. Frações de classe burguesas na
Ucrânia pós-soviética
Para entender o aparecimento
da burguesia no espaço pós-soviético, penso ser necessário
refletir um pouco sobre a aparição dos interesses de classe da
burguesia no momento imediatamente anterior ao golpe
contrarrevolucionário de 1991/1992. O professor moscovita A.
Kharlámenko possui um tese interessante a respeito, da qual
traduzimos e reproduzimos um pequeno pedaço:
“(...) Assim, quem faz o papel [de
força hegemônica da contrarrevolução] é um grupo social
específico que, não compondo ainda uma classe em si, estava já em
grande parte integrado ao sistema capitalista mundial e possuía
fortes ligações com a oligarquia monopolista-estatal do
imperialismo (…). Fala-se, antes de mais nada, daquela parte do
aparelho administrativo que mediava as relações com o mundo
capitalista, especialmente as econômicas (importações,
exportações, crédito, etc.); (…) À medida em que os países
socialistas tornavam-se periferia econômica dos centros
imperialistas, à medida em que convertiam-se em exportadores de
matéria-prima energética (e outras) e suas relações com o mundo
capitalista tornavam-se relações de dependência,
mais o grupo social que mediava essas relações passava
objetivamente de representante dos interesses do socialismo a fator
da destruição do mesmo, passava ser o condutor da lógica do
capitalismo dentro do socialismo. É nessa qualidade objetiva, e não
na primazia de certos “agentes de influência” que [este grupo]
tornou-se a força hegemônica do golpe contrarrevolucionário, e
mais tarde o centro dominante e administrador da nova burguesia,
coisa que é em parte testemunhada pelas biografias dos “senhores
da vida” russos de hoje em dia.” (KHARLÁMENKO, 2009)
Na Ucrânia, como na Rússia,
observa-se a ascensão de dois grupos distintos imediatamente após a
retirada do poder político das mãos do proletariado.
Um deles é a fração que na Rússia
foi representada pela dupla Gorbachov/Iéltsin e assumiu o poder
imediatamente após a derrubada do socialismo, menos ligado às
esferas da produção e mais atrelado aos desejos do capital
financeiro dos centros imperialistas com interesses na região. Na
Ucrânia, esse grupo era representado pelos ex-presidentes Yúlia
Timoschénko e Víktor Yúschenko, e tomou ares mais radicais com a
subida ao poder do bloco que liderou a “Revolução Laranja” de
2004 (os recém-empossados presidente Aleksándr Turchínov,
primeiro-ministro Arsêni Yatseniúk e os mesmo Timoschénko e
Yúschenko, etc.).
O projeto deste grupo é o projeto da
União Europeia, dos Estados Unidos, do FMI e da OTAN. Para resumir
em uma palavra, é a expressão política do neoliberalismo
no espaço pós-soviético. Trata-se do grupo que, na Rússia de
Iéltsin, privatizou o monopólio estatal de energia e que, na
Ucrãnia de Yúlia Timoschénko (2008-2010), contraiu três quartos
dos US$ 12,6 bilhões que o país emprestou do FMI nos últimos vinte
anos.
Apesar de ter no neoliberalismo e
no recente acordo com a UE um ponto de unidade, esse grupo
passa de longe de ser um bloco unitário.
Entre as associações majoritárias e que compõe a coalizão que,
sob os auspícios do ocidente deflagrou a “Revolução Laranja”
(2004), estão os partidos Batkívschina
(Pátria, de Timoschénko, Yatseniúk e Turchínov) e Nasha
Ukraina (Nossa Ucrânia, do
ex-presidente Víktor Yúschenko).
Sócios
até então minoritários e sem representação parlamentar de peso,
mas peça chave para entender a maneira como o imperialismo joga com
as frações de classe internas da Ucrânia, estão os partidos de
extrema-direita Udár (Golpe,
cuja figura proeminente é o ex-boxeador Vitáli Klitchko e que
mantém ligações estreitas com a Alemanha) e o bandeirista Svobóda
(Liberdade, do fascista Oleg
Tiaguinbók, que mantém relações diretas com o Departamento de
Estado estadunidense). Há ainda agremiações menores de
extrema-direita (por vezes declaradamente fascistas), como a
Assembleia Nacional Ucraniana–Autodefesa Nacional Ucraniana
(ANU-ANU).
Já o outro grupo que logrou tornar-se
proprietário/administrador dos grandes monopólios
energético-produtivos que existiam no espaço soviético (dominado
pela indústria de máquinas e pela extração de carvão e
localizado na parte Leste do rio Dnépr) é o liderado por Víktor
Yanukóvich e seu Partido das Regiões, algo similar ao grupo ligado
à Putin e sua Rússia Unida, na Federação Russa.
Mais voltado ao capital produtivo do
que ao financeiro, o poder nas mãos do Partido das Regiões é o
poder dos oligarcas industriais ucranianos e russos ligados à
extração de carvão e à metalurgia. Um dado representativo é de
que em 2008 a quantidade de bilionários na Ucrânia era de 8
pessoas. Em 2011 a cifra sobe para 21.
Uma rápida olhada
na sucessão presidencial dos últimos tempos mostra, pelo menos de
maneira superficial, que esta poderia ser mais uma das reviravoltas
internas que refletiam, de uma maneira ou de outra, a correlação de
forças entre os dois grupos dominantes da burguesia ucraniana. Desde
a “Revolução Laranja”, o setor ligado ao capital financeiro
internacional forçara sua entrada no poder executivo e fizera com
que houvessem algumas tentativas de pactos nacionais entre os setores
da burguesia. Yanukóvich, por exemplo, que havia sido apontado como
primeiro-ministro em 2004, foi deposto pela “Revolução Laranja”
e em seu lugar entraram Víktor Yúschenko e Yúlia Timoschénko.
Logo, em 2006, depois de um período de grande instabilidade política
e diante da falha em criar uma coalizão de apoio (o que provou, em
grande medida, que a “Revolução Laranja” carecia de qualquer
base interna popular), as forças de Yúschenko e Timoschénko
vêem-se fragmentadas diante do bloco criado pela oposição: O
Partido das Regiões (de Yanukóvich), o Partido Socialista Ucraniano
e o Partido Comunista. Yúschenko lança então uma proposta de pacto
social entre as frações dominantes, que é aceito em partes. Mais
adiante, invertem-se os cargos e Yanukóvich torna-se presidente e
Yúschenko primeiro-ministro. Timoschénko é enviada à cadeia por
corrupção ativa, e assim por diante...
Mas, qual é o
novo fator da recente revolta violenta na Praça da Independência?
Em que difere a presente reviravolta dos tradicionais golpes e
mudanças de poder dentro da coalizção de forças na Ucrânia?
II. O fascismo aberto como nova
aposta do imperialismo
Como resultado de
meses de protestos na Praça da Indepenência em Kiev, no dia 22 de
fevereiro de 2014, manifestantes armados e opostos ao governo de
Víktor Yanukóvich anunciam a deposição do mesmo e a criação de
um governo de transição. Os Estados Unidos e a Europa reconhecem
imediatamente o novo governo, e passa-se ao espólio de guerra entre
as forças opositoras.
Yúlia
Timoschénko, então presa por corrupção ativa e desvio de dinheiro
público, é imediatamente solta, mas anuncia que não estaria
interessada em concorrer à presidência do país. O mesmo o faz o
seu ex-companheiro de cargo, Víktor Yúschenko.
Uma olhada
superficial na composição do novo governo, que leva Arsêni
Yatseniúk e Aleksándr Turchínov (ambos da cúpula da Batkívschina,
partido de Timoschénko, que liderou a “Revolução Laranja”)
como primeiro-ministro e presidente, respectivamente, parece
dizer: “mais do mesmo”. Trata-se de uma percepção apenas
superficial. A característica principal e a inovação que permite
algumas asserções sobre o caráter e a maneira como o imperialismo
lidará com o governo de transição é a distribuição dos cargos
ligados à segurança nacional. Com pífia representatividade
popular, o partido Svobóda (Liberdade)
ficou com seis dos cargos executivos do novo governo. Que partido é
esse?
Entre meados de janeiro, a imprensa
mundial dava destaque, entre outras imagens dos violentos distúrbios
na capital ucraniana Kiev, à decapitação de uma estátua de Lênin.
Os autores não tardaram a aparecer: todos militantes do Svobóda
(Liberdade), que, como
seu irmão Frente Nacional Francesa, insere-se no espectro daqueles
que realizam marchas em homenagem aos veteranos da SS (a polícia
secreta nazista). O Svobóda
têm como referência máxima o líder nacionalista ucraniano Stepan
Bandera (1909–1959) , principal colaborador de Hitler na Ucrânia e
entusiasta dos assassinatos em massa de judeus e poloneses durante a
Segunda Guerra Mundial.
Antes de 2004, o
Svobóda era conhecido como o Partido Nacional-Social da
Ucrânia e usava o “Wolfsangel” nazista como símbolo. Durante os
protestos, o Svobóda fez
o papel de guarda das manifestações (através de seu braço
paramilitar, os Camisas Marrons), e recentemente atacou um estudante
de esquerda que tentava, desavisado sobre o que realmente eram os
protestos, gritar palavras de ordem sobre a igualdade econômica e de
gênero. Mais ainda, alguns dias depois, militantes do partido
atacaram e feriram seriamente a dois sindicalistas, acusando-os de
comunistas.
Andrei Parúbi,
fundador do partido Svobóda com
Oleg Tiaguinbók, foi desigando secretário do Comitê Nacional de
Defesa e Segurança (CNDS), entidade que controla diretamente o
Ministério da Defesa, as Forças Armadas, o Judiciário, a Segurança
Nacional e a Inteligência.
Parúbi
foi uma das figuras proeminentes da “Revolução Laranja” de
2004, e seu partido era fortemente financiado pelo Ocidente.
Atualmente, os grandes meios de comunicação referem-se a ele como
kommendant
(comandante militar) dos protestos na Praça da Independência.
O segundo secretário do CNDS, apontado
pelo próprio Parúbi, também não deixa dúvidas de sua
procedência. Dmitro Yárosh, deputado parlamentar e líder da
coalizão parlamentar de extrema-direita Právi Séktor (Setor
de Direita) foi, durante os protestos que depuseram Yanukóvich,
chefe do batalhão dos Camisas Marrons, que
garantia os enfrentamentos armados dos opositores com as forças de
segurança nacional. Entre as propostas que Yárosh levou ao
parlamento está a proibição do Partido Comunista da Ucrânia.
Oleg
Makhítski é o novo Procurador-Geral da Ucrânia. Oleksándr Sich
foi apontado como vice-primeiro ministro para assuntos econômicos.
Sich é muito conhecido por sua longa campanha parlamentar pela
proibição do aborto na Ucrânia (incluídos os casos de gravidez
por estupro). O Ministério da Educação ficou com Serhi Kvit e os
da Ecologia e Agricultura com Andrei Makhnik e Igor Shvaiko,
respectivamente. Todos militantes do Svobóda.
Mas o
fascismo controla ainda outros setores do chamado governo de
transição: Tatiána Chernovol, retratada pela mídia ocidental como
uma jornalista investigativa sem qualquer menção ao seu
envolvimento passado com a organização declaradamente anti-semita
Assembleia Nacional Ucraniana–Autodefesa Nacional Ucraniana
(ANU-ANU) foi nomeada presidente do comitê anti-corrupção. Dmitro
Bulátov, também ligado à ANU-ANU, foi apontado ministro da
juventude e dos esportes. Mais ainda, Igor Sobolev, líder de um dos
grupos civis na Praça da Independência e politicamente muito
próximo a Yatseniúk (do Batkívschina, atual
primeiro-ministro), foi nomeado presidente do Comitê de Lustrismo.
Na década de 90, Lustrismo foi
o nome dadoaos comitês governamentais dos estados pós-soviéticos
encarregados de expurgar do governo e ostracizar da vida pública os
ex-dirigentes acusados de “colaboração com o regime comunista”.
Curiosamente, o gabinete inteirino
forrado de fascistas adequa-se inteiramente ao gabinete sugerido pela
Secretária de Estado para Assuntos da Europa e Eurásia, Victoria
Nuland, no mesmo telefonema interceptado ao embaixador estadunidense
em Kiev que ganhou notoriedade no Ocidente pela expressão “Foda-se
a UE”, utilizada pela ex-oficial da administração Bush.
III. Recados do imperialismo gringo,
não só à UE
Quando vazou o
telefonema supostamente confidencial de Victoria Nuland, o mesmo que
causou alarde e furor nos grandes meios de comunicação europeus
pela frase indecorosa de “Foda-se a UE”, os Estados Unidos
mandavam não apenas um recado aos interesses dos imperialistas
europeus na Eurásia, mas também visavam avisar à Rússia que suas
pretensões iam muito além de uma recomposição dentro das facções
já dominantes dentro do esquema de poder na Ucrânia.
De fato, a Ucrânia
tem tomado posições dúbias, que oscilam entre os interesses dos
Estados Unidos, os interesses da UE e os interesses da Rússia, desde
o colapso da URSS. Nem uma fração nem a outra tem conseguido
superar, por um lado, a sedução econômica, política e militar do
capital financeiro internacional, e por outro, a certeza de vender
seus produtos no mercado internacional (o comércio de exportação
da Ucrânia vai todo para a Rússia e demais países da CEI).
Em 21 de
fevereiro, portanto um dia antes de sua deposição, Víktor
Yanukóvich assinou um acordo com a oposição da Praça da
Independência,mediado por embaixadores da Rússia, França, Alemanha
e Polônia, no qual virtualmente cedia à todas as principais
demandas do movimento golpista, inclusive concordando em dissolver o
parlamento e convocar eleições antecipadas. Nas palavras do
presidente russo Vladímir Pútin, “Yanukóvich, ao assinar o
acordo, praticamente entregou o poder”.
Em 22 de
fevereiro, depois de um aperto de mãos com a oposição no dia
anterior, Yanukóvich vai a Khárkov para um evento onde iria
discursar. A oposição então declara vago o cargo de presidente e
toma o poder através de uma votação duvidosa do Parlamento Supremo
(Rada), onde os meios de imprensa alternativa denunciaram mais de uma
vez a larga utilização de métodos de terrorismo fascista por parte
dos Camisas Marrons contra os legisladores, para que votassem em seu
favor.
Ao que parece, o
capital financeiro internacional recorrera mais uma vez à ditadura
aberta de seus elementos mais reacionários para fazer valer seus
interesses.
(Continua)