por Pascual
Serrano*, traduzido por Vinicius C. para o Batalha de Ideias.
Quando, por
que e com que aval internacional se criou Israel? Quem vivia nessa
terra antes que se criasse esse Estado? Qual é a diferença entre
sionismo e semitismo? Têm os mesmos direitos todos os israelenses?
Quais são as fronteiras de Israel segundo a ONU? Quantos palestinos
vivem fora de sua terra? O que dizem as resoluções do Conselho de
Segurança a respeito do conflito árabe-israelense? Israel cumpre
essas resoluções? São perguntas básicas e lógicas que surgem aos
que desejam compreender minimamente o conflito palestino-israelense e
às quais não se encontrará resposta nos meios de comunicação
apesar de todos os dias existirem notícias sobre a região.
As
rotinas atuais dos meios de comunicação impedem conhecer todos
estes antecedentes históricos e elementos de contexto
imprescindíveis para compreender o conflito árabe-israelense. Com
toda segurança, se um cidadão pretendesse mediante a leitura diária
da imprensa e do noticiário televisivo de cada noite compreender o
que acontece na região não o conseguiria. Assistiria a uma
quantidade de notícias dispersas segundo as quais ontem soube que
houve uma reunião de líderes, hoje que mataram dois palestinos,
amanhã que um suicida explodiu em um ônibus. Servem essas
informações para compreender algo?
Em
junho de 2007, foi notícia [1] esporádica a difusão de uma
gravação do soldado israelense capturado por Hamas um ano antes.
Assim pudemos desenterrar, quase esquecida pelos meios, a detenção
que provocou que o exército israelense destroçasse as
infraestruturas de Gaza e matasse 400 palestinos, a metade deles
civis. Só é um exemplo de como a obsessão dos meios pela imediata
atualidade e seu consequente esquecimento impede que ofereçam a
perspectiva necessária para compreender os acontecimentos. Por outro
lado, a confusão que transmitem os meios torna impossível que as
audiências entendam as diferentes posições dos atores em conflito.
Se observarmos os meios de comunicação, parece que o problema é
basicamente de intolerância e violência entre palestinos e judeus,
sem mais elementos de aprofundamento nem contexto. Em outras muitas
ocasiões, os meios se regozijam excessivamente nas “cúpulas de
Chefes de Estado, viagens de governantes e similares, e em detalhes e
outros episódios sem interesse, mas incrivelmente muito comentados.
Trata-se, em suma, de prestar atenção a tudo menos o essencial do
assunto e que a gente se perca em detalhes” [2].
Outra
questão que afeta muito aos profissionais é o se sentirem coibidos
por Israel por uma razão inquestionável: os judeus foram as
principais vítimas de algo tão atroz como o Holocausto. “O Estado
israelense vive de sua condição de vítima (condição que não é
outorgada aos palestinos, apesar de serem suas vítimas) e cataloga a
qualquer um que questione a atuação de seus governantes de
«antissemitas»” [3].
Os
jornalistas nunca recorrem à bibliografia rigorosa que pesquisa o
comportamento dos israelenses com os palestinos. Obras como A
limpeza étnica da Palestina, em que o
historiador israelense e judeu Ilan Pappé explica que a deportação
dos palestinos em 1948 fez parte de uma estratégia cuidadosamente
desenhada pelos dirigentes judeus de organizações armadas (então
eles punham bombas em edifícios civis como no Hotel King David de
Jerusalém, com 91 mortos, ainda que ninguém lhes qualifique de
“terroristas”) para combinar com a maior parte da Palestina
histórica.
Os
antecedentes são tão importantes para compreender o conflito
árabe-israelense que um dos princípios fundamentais do governo de
Israel (o único dos dois bandos que tem dinheiro, poder e influência
nos meios) é tentar manipular a história a seu favor. A operação
chega inclusive até Wikipedia. Em março de 2008,
o portal Electronic Intifada [4], gerenciado pelo jornalista
estadunidense-palestino Ali Abunimah, denunciava que o grupo
israelense Comitê para a Precisão da Informação sobre o Oriente
Próximo na América (CAMERA) recrutava voluntários para editar a
enciclopédia on-line e impedir deste modo que os "editores
anti-israelenses introduzam todo tipo de preconceitos e erros em
muitos artigos relacionados com Israel" [5].
Dois
pesos, duas medidas
Sem
dúvida, o conflito árabe-israelense é o que mais sofre o fenômeno
dos valores duplos. Noam Chomsky assinalou a diferente repercussão
mediática do assassinato de um deficiente estadunidense no sequestro
por um comando palestino do transatlântico Achille Lauro (outubro de
1985) que entrou nos anais do terrorismo, diante da morte, crivado de
balas, de um deficiente palestino quando fugia em sua cadeira de
rodas com uma bandeira branca em Yenín em 2001, condenada ao
silêncio [6]. Um coletivo de personalidades destacadas na análise e
crítica da situação em Israel/Palestina realizou um estudo
estatístico da cobertura da Intifada palestina durante 2004 [7] em
três televisões estadunidenses. Concluíram que existia uma
cobertura significativamente deformada. Os meios analisados
informaram de mortes de crianças israelenses com uma percentagem em
média dez vezes maior que as mortes de crianças palestinas.
Considerando que no período estudado morreram 22 crianças
palestinas a cada criança israelense, o desequilíbrio na cobertura
é evidente.
Mas
vejamos exemplos mais concretos. Em junho de 2006 um jornal trouxe a
manchete “Hamas rompe a trégua e reivindica o lançamento de
foguetes contra Israel” [8]. No texto verificamos que foi uma
resposta “ao ataque naval do exército israelense que ontem acabou
com a vida de sete civis palestinos”. Em conclusão, Israel mata
sete civis, Hamas responde com sete foguetes que não causam nem
mortos nem feridos e quem rompeu a trégua, os que originam
violência, são os palestinos. Podemos ler manchetes como “Vítima
número 3.000 da Intifada palestina” [9]. Diferentemente do que se
poderia pensar, não fazia referência a um israelense morto nas mãos
de ativistas palestinos, mas o morto era um policial palestino
assassinado em Gaza numa incursão do exército israelense. Até os
palestinos são vítimas da Intifada. No imaginário da comunidade
internacional as vítimas percebem-se como procedentes dos dois
lados, mas estes se apresentam um como terrorista e outro como o
exército regular de um governo democrático. Desde o ano 2000 até
março de 2008, o exército israelense tinha assassinado a mil
crianças de Anápolis, em novembro de 2007, foram assassinados 331
palestinos, entre eles 39 crianças [10]. Estaríamos, portanto,
diante de uma situação na qual, em sua “luta contra o
terrorismo”, Israel mata mais crianças que os soldados mortos pelo
“terrorismo palestino”.
A
dupla moral pode ser apreciada perfeitamente na
linguagem utilizada. E ainda mais nos artigos de opinião. Podemos
ler “atentados selvagens” [11], quando se referem a um ataque
suicida palestino que mata três pessoas em Israel, ou “cúmulo de
erros” [12] no título do editorial no dia seguinte de Israel matar
um dirigente do Hamas e dez civis palestinos, entre eles três
crianças e três mulheres que passavam a tarde na praia. No conflito
palestino-israelense a batalha da linguagem é vital para Israel,
ninguém dúvida de que a maioria dos leitores só se concentra nas
manchetes e que estas costumam ser escolhidas pelos chefes de redação
e não pelos correspondentes. Um exemplo é o uso de “capturado”
ou “sequestrado”. Na televisão escutamos falar de um “jovem
sequestrado de 19 anos” [13]. Uma forma muito peculiar para
referir-se a um soldado israelense capturado pelas milícias
palestinas. Podemos encontrar também uma notícia intitulada assim:
“Soldados israelenses prendem o vice-primeiro ministro palestino
Naser Al Shaer”. E subtitulada desta forma: “A operação
enquadra-se dentro das ações de Israel contra membros do Hamas
depois do sequestro do soldado hebreu Gilad Shalit no mês de junho”
[14]. Observe-se que na Palestina os ministros civis e não armados
que tiveram sua casa invadida por soldados hebreus são ”presos”
e os militares israelenses armados que são capturados pelas milícias
palestinas são ”sequestrados”. Na mesma linha, o muro não é
muro senão barreira de segurança, os radicais judeus são ortodoxos
enquanto os radicais palestinos são terroristas.
As
fontes e os analistas
A
principal distorção para a informação sobre o conflito
palestino-israelense é que “os meios norte-americanos utilizam
jornalistas judeus recebendo assim, em 99 por cento dos casos, uma
informação distorcida e enviesada”. Conquanto os correspondentes
dos meios espanhóis na região são também espanhóis, “quase a
metade deles têm jornalistas judeus em seus escritórios. Nenhum
conta com jornalistas, nem sequer com colaboradores, palestinos e
resta dizer que os judeus não entram nos territórios palestinos
tampouco nos países da região” [15]. Por outro lado, “a
comodidade leva à maioria dos correspondentes ocidentais a não
entrar nem em Gaza nem na Cisjordânia a não ser que seja gravíssimo
o que ocorre. Gaza é um lugar incômodo, higienicamente questionável
e de difícil trânsito: há um milhão de histórias a serem
contadas, mas esse argumento não costuma convencer, de modo que o
volume da informação que se publica sobre os palestinos é
irrisório em comparação com as histórias sobre israelenses”
[16].
Um
mecanismo habitual dos meios de comunicação para deslizar sua linha
editorial de forma não explícita é a seleção dos analistas. Sob
a aparência de especialistas, mais que de comentadores, essas
assinaturas reproduzem a linha política que se deseja, mediante a
técnica de escolher previamente aquele que compartilha o ideário do
meio. “O lobby israelense na Espanha, como no resto do mundo, é
muito poderoso e ‘próximo’ a pessoas nas redações (em certas
ocasiões, redatores-chefe ou até além) para reconduzir
informações, questionar o vocabulário empregado e ‘vender’
comentários de ‘especialistas’, além de oferecer viagens pagas
a Tel Aviv para dali ‘demonstrar’ que o muro não é muro senão
barreira, que os palestinos se queixam de vício e que são um
povo-vítima ameaçado por seus desagradáveis vizinhos árabes, que
já nasceram com o ódio correndo por suas veias” [17].
Outro
desequilíbrio é a seleção das personalidades e analistas que
elegem quando abordam determinados acontecimentos. El País, um dia
antes do aniversário da Nakba, data que assinala a expulsão de
750.000 palestinos, cobriu-a com uma entrevista com Daniel Baremboin,
um diretor de orquestra pacifista israelense, muito respeitável,
evidentemente, mas israelense; um encontro digital com o embaixador
israelense na Espanha, e a chegada de Bush a Israel (que, na verdade,
era Jerusalém, não Israel, matiz que ninguém faz).
A
democracia israelense
Os
meios reproduzem o discurso político de que Israel é a única
democracia da região. Mas se trataria de “uma democracia estranha
na qual os militares exercem com frequência funções-chave“.
Pense, por exemplo, em Ariel Sharon, Ehud Barak, Benjamin Netanyahu,
Isaac Rabín ou Menahem Begín. Todos são militares ou procedem de
organizações militares. E todos chegaram a ser primeiro-ministros
de Israel [18].
Anistia
Internacional, no relatório intitulado “O racismo e o Ministério
de Justiça”, difundido em 2001, deixava em evidência o racismo da
“democracia” israelense onde várias leis são explicitamente
discriminatórias já que se baseiam na premissa de um Estado judeu
para o povo judeu. Em consequência, discriminam aos não-judeus,
em concreto aos palestinos que viveram nestas terras geração depois
de geração. Em alguns casos, garantem explicitamente um tratamento
preferencial aos cidadãos judeus em esferas como a educação, a
moradia pública, a saúde e o trabalho [19].
Atualmente,
oculta-se, ao menos, tanta informação como a que se divulga. As
duras condições nas quais devem sobreviver os palestinos raras
vezes se refletem nos meios de comunicação. E menos ainda em
notícias unidas às políticas aplicadas pelo governo e o exército
israelenses. Por exemplo, na Cisjordânia, um palestino só dispõe
de 50 m3 de água ao ano para cobrir todas suas necessidades: beber,
lavar-se, cozinhar, agricultura, indústria, etc. No entanto, cada
colono ilegal dispõe de 2.400 m3 de água ao ano. Mas, ademais, são
os palestinos os que financiam a água, porque pagam mais do dobro
que um israelense pela mesma quantidade. Com a eletricidade sucede
algo similar, Israel destruiu a única empresa que produzia
eletricidade na Palestina e lhes impediu de comprar novos geradores
pelo que têm que a comprar tudo de Israel pelo dobro do preço que
paga um israelense [20].
O
conflito palestino-israelense tem-se enquistado na agenda mediante o
formato de difundir laconicamente partes de guerra de mortos e
feridos. Quando nos chega um protagonista palestino com nomes e
sobrenomes é porque temos as imagens de vídeo prévias a seu
martírio, nunca aparecem os palestinos que lutam para sobreviver
mediante a cooperação e a ajuda mútua.
O
silenciamento também se aplica às vozes que se levantam denunciando
a política israelense. Em julho de 2006, dois prêmios Nobel de
Literatura, José Saramago e Harold Pinter, junto a outros dois
escritores de prestígio internacional, John Berger e Noam Chomsky,
difundiram um escrito titulado “Em defesa do povo palestino”
[21]. Na imprensa espanhola só mereceu uma carta ao diretor do El
País [22]. E isso apesar de se fazer pública em pleno massacre de
um povo, uma guerra regional entre Israel e Líbano que afetava a
vários países e toda a região, a crise no Conselho de Segurança
da ONU e milhares de cidadãos manifestando nas ruas. A denúncia
destes destacados intelectuais ficou como uma carta ao diretor, como
se fosse uma queixa do vizinho pela recolhida municipal dos lixos.
Isto contrasta com o trato diferente que teve, em 2003, um desses
Nobel, José Saramago, quando escreveu umas breves linhas criticando
umas condenações a morte em Cuba. Então mereceu o destaque nesse
mesmo jornal e um privilegiado espaço como artigo de opinião que
ademais foi recolhido por todos os meios e agências.
*Pascual
Serrano é jornalista. Este texto é um extrato do capítulo
referente à Ásia de seu livro Desinformación.
Como los medios ocultan el mundo, Península,
2009.
Notas
[10]
Ramonet, I, “Por una resistencia de masas no violenta contra
Israel”, entrevista con el líder palestino Mustafá Barghouti, Le
Monde Diplomatique, mayo 2008.
[19]
Informe de Amnistía Internacional, de 2001: Racism and the
Administration of Justice (Racismo y el Minis terio de Justicia).
o original em espanhol pode ser lido em: http://www.revistapueblos.org/spip.php?article2440
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