Tuesday, July 10, 2012

Desinformar sobre o conflito palestino-israelense




por Pascual Serrano*, traduzido por Vinicius C. para o Batalha de Ideias. 


Quando, por que e com que aval internacional se criou Israel? Quem vivia nessa terra antes que se criasse esse Estado? Qual é a diferença entre sionismo e semitismo? Têm os mesmos direitos todos os israelenses? Quais são as fronteiras de Israel segundo a ONU? Quantos palestinos vivem fora de sua terra? O que dizem as resoluções do Conselho de Segurança a respeito do conflito árabe-israelense? Israel cumpre essas resoluções? São perguntas básicas e lógicas que surgem aos que desejam compreender minimamente o conflito palestino-israelense e às quais não se encontrará resposta nos meios de comunicação apesar de todos os dias existirem notícias sobre a região.

As rotinas atuais dos meios de comunicação impedem conhecer todos estes antecedentes históricos e elementos de contexto imprescindíveis para compreender o conflito árabe-israelense. Com toda segurança, se um cidadão pretendesse mediante a leitura diária da imprensa e do noticiário televisivo de cada noite compreender o que acontece na região não o conseguiria. Assistiria a uma quantidade de notícias dispersas segundo as quais ontem soube que houve uma reunião de líderes, hoje que mataram dois palestinos, amanhã que um suicida explodiu em um ônibus. Servem essas informações para compreender algo?

Em junho de 2007, foi notícia [1] esporádica a difusão de uma gravação do soldado israelense capturado por Hamas um ano antes. Assim pudemos desenterrar, quase esquecida pelos meios, a detenção que provocou que o exército israelense destroçasse as infraestruturas de Gaza e matasse 400 palestinos, a metade deles civis. Só é um exemplo de como a obsessão dos meios pela imediata atualidade e seu consequente esquecimento impede que ofereçam a perspectiva necessária para compreender os acontecimentos. Por outro lado, a confusão que transmitem os meios torna impossível que as audiências entendam as diferentes posições dos atores em conflito. Se observarmos os meios de comunicação, parece que o problema é basicamente de intolerância e violência entre palestinos e judeus, sem mais elementos de aprofundamento nem contexto. Em outras muitas ocasiões, os meios se regozijam excessivamente nas “cúpulas de Chefes de Estado, viagens de governantes e similares, e em detalhes e outros episódios sem interesse, mas incrivelmente muito comentados. Trata-se, em suma, de prestar atenção a tudo menos o essencial do assunto e que a gente se perca em detalhes” [2].

Outra questão que afeta muito aos profissionais é o se sentirem coibidos por Israel por uma razão inquestionável: os judeus foram as principais vítimas de algo tão atroz como o Holocausto. “O Estado israelense vive de sua condição de vítima (condição que não é outorgada aos palestinos, apesar de serem suas vítimas) e cataloga a qualquer um que questione a atuação de seus governantes de «antissemitas»” [3].

Os jornalistas nunca recorrem à bibliografia rigorosa que pesquisa o comportamento dos israelenses com os palestinos. Obras como A limpeza étnica da Palestina, em que o historiador israelense e judeu Ilan Pappé explica que a deportação dos palestinos em 1948 fez parte de uma estratégia cuidadosamente desenhada pelos dirigentes judeus de organizações armadas (então eles punham bombas em edifícios civis como no Hotel King David de Jerusalém, com 91 mortos, ainda que ninguém lhes qualifique de “terroristas”) para combinar com a maior parte da Palestina histórica.

Os antecedentes são tão importantes para compreender o conflito árabe-israelense que um dos princípios fundamentais do governo de Israel (o único dos dois bandos que tem dinheiro, poder e influência nos meios) é tentar manipular a história a seu favor. A operação chega inclusive até Wikipedia. Em março de 2008, o portal Electronic Intifada [4], gerenciado pelo jornalista estadunidense-palestino Ali Abunimah, denunciava que o grupo israelense Comitê para a Precisão da Informação sobre o Oriente Próximo na América (CAMERA) recrutava voluntários para editar a enciclopédia on-line e impedir deste modo que os "editores anti-israelenses introduzam todo tipo de preconceitos e erros em muitos artigos relacionados com Israel" [5].

Dois pesos, duas medidas

Sem dúvida, o conflito árabe-israelense é o que mais sofre o fenômeno dos valores duplos. Noam Chomsky assinalou a diferente repercussão mediática do assassinato de um deficiente estadunidense no sequestro por um comando palestino do transatlântico Achille Lauro (outubro de 1985) que entrou nos anais do terrorismo, diante da morte, crivado de balas, de um deficiente palestino quando fugia em sua cadeira de rodas com uma bandeira branca em Yenín em 2001, condenada ao silêncio [6]. Um coletivo de personalidades destacadas na análise e crítica da situação em Israel/Palestina realizou um estudo estatístico da cobertura da Intifada palestina durante 2004 [7] em três televisões estadunidenses. Concluíram que existia uma cobertura significativamente deformada. Os meios analisados informaram de mortes de crianças israelenses com uma percentagem em média dez vezes maior que as mortes de crianças palestinas. Considerando que no período estudado morreram 22 crianças palestinas a cada criança israelense, o desequilíbrio na cobertura é evidente.

Mas vejamos exemplos mais concretos. Em junho de 2006 um jornal trouxe a manchete “Hamas rompe a trégua e reivindica o lançamento de foguetes contra Israel” [8]. No texto verificamos que foi uma resposta “ao ataque naval do exército israelense que ontem acabou com a vida de sete civis palestinos”. Em conclusão, Israel mata sete civis, Hamas responde com sete foguetes que não causam nem mortos nem feridos e quem rompeu a trégua, os que originam violência, são os palestinos. Podemos ler manchetes como “Vítima número 3.000 da Intifada palestina” [9]. Diferentemente do que se poderia pensar, não fazia referência a um israelense morto nas mãos de ativistas palestinos, mas o morto era um policial palestino assassinado em Gaza numa incursão do exército israelense. Até os palestinos são vítimas da Intifada. No imaginário da comunidade internacional as vítimas percebem-se como procedentes dos dois lados, mas estes se apresentam um como terrorista e outro como o exército regular de um governo democrático. Desde o ano 2000 até março de 2008, o exército israelense tinha assassinado a mil crianças de Anápolis, em novembro de 2007, foram assassinados 331 palestinos, entre eles 39 crianças [10]. Estaríamos, portanto, diante de uma situação na qual, em sua “luta contra o terrorismo”, Israel mata mais crianças que os soldados mortos pelo “terrorismo palestino”.

A dupla moral pode ser apreciada perfeitamente na linguagem utilizada. E ainda mais nos artigos de opinião. Podemos ler “atentados selvagens” [11], quando se referem a um ataque suicida palestino que mata três pessoas em Israel, ou “cúmulo de erros” [12] no título do editorial no dia seguinte de Israel matar um dirigente do Hamas e dez civis palestinos, entre eles três crianças e três mulheres que passavam a tarde na praia. No conflito palestino-israelense a batalha da linguagem é vital para Israel, ninguém dúvida de que a maioria dos leitores só se concentra nas manchetes e que estas costumam ser escolhidas pelos chefes de redação e não pelos correspondentes. Um exemplo é o uso de “capturado” ou “sequestrado”. Na televisão escutamos falar de um “jovem sequestrado de 19 anos” [13]. Uma forma muito peculiar para referir-se a um soldado israelense capturado pelas milícias palestinas. Podemos encontrar também uma notícia intitulada assim: “Soldados israelenses prendem o vice-primeiro ministro palestino Naser Al Shaer”. E subtitulada desta forma: “A operação enquadra-se dentro das ações de Israel contra membros do Hamas depois do sequestro do soldado hebreu Gilad Shalit no mês de junho” [14]. Observe-se que na Palestina os ministros civis e não armados que tiveram sua casa invadida por soldados hebreus são ”presos” e os militares israelenses armados que são capturados pelas milícias palestinas são ”sequestrados”. Na mesma linha, o muro não é muro senão barreira de segurança, os radicais judeus são ortodoxos enquanto os radicais palestinos são terroristas.

As fontes e os analistas

A principal distorção para a informação sobre o conflito palestino-israelense é que “os meios norte-americanos utilizam jornalistas judeus recebendo assim, em 99 por cento dos casos, uma informação distorcida e enviesada”. Conquanto os correspondentes dos meios espanhóis na região são também espanhóis, “quase a metade deles têm jornalistas judeus em seus escritórios. Nenhum conta com jornalistas, nem sequer com colaboradores, palestinos e resta dizer que os judeus não entram nos territórios palestinos tampouco nos países da região” [15]. Por outro lado, “a comodidade leva à maioria dos correspondentes ocidentais a não entrar nem em Gaza nem na Cisjordânia a não ser que seja gravíssimo o que ocorre. Gaza é um lugar incômodo, higienicamente questionável e de difícil trânsito: há um milhão de histórias a serem contadas, mas esse argumento não costuma convencer, de modo que o volume da informação que se publica sobre os palestinos é irrisório em comparação com as histórias sobre israelenses” [16].

Um mecanismo habitual dos meios de comunicação para deslizar sua linha editorial de forma não explícita é a seleção dos analistas. Sob a aparência de especialistas, mais que de comentadores, essas assinaturas reproduzem a linha política que se deseja, mediante a técnica de escolher previamente aquele que compartilha o ideário do meio. “O lobby israelense na Espanha, como no resto do mundo, é muito poderoso e ‘próximo’ a pessoas nas redações (em certas ocasiões, redatores-chefe ou até além) para reconduzir informações, questionar o vocabulário empregado e ‘vender’ comentários de ‘especialistas’, além de oferecer viagens pagas a Tel Aviv para dali ‘demonstrar’ que o muro não é muro senão barreira, que os palestinos se queixam de vício e que são um povo-vítima ameaçado por seus desagradáveis vizinhos árabes, que já nasceram com o ódio correndo por suas veias” [17].

Outro desequilíbrio é a seleção das personalidades e analistas que elegem quando abordam determinados acontecimentos. El País, um dia antes do aniversário da Nakba, data que assinala a expulsão de 750.000 palestinos, cobriu-a com uma entrevista com Daniel Baremboin, um diretor de orquestra pacifista israelense, muito respeitável, evidentemente, mas israelense; um encontro digital com o embaixador israelense na Espanha, e a chegada de Bush a Israel (que, na verdade, era Jerusalém, não Israel, matiz que ninguém faz).

A democracia israelense

Os meios reproduzem o discurso político de que Israel é a única democracia da região. Mas se trataria de “uma democracia estranha na qual os militares exercem com frequência funções-chave“. Pense, por exemplo, em Ariel Sharon, Ehud Barak, Benjamin Netanyahu, Isaac Rabín ou Menahem Begín. Todos são militares ou procedem de organizações militares. E todos chegaram a ser primeiro-ministros de Israel [18].

Anistia Internacional, no relatório intitulado “O racismo e o Ministério de Justiça”, difundido em 2001, deixava em evidência o racismo da “democracia” israelense onde várias leis são explicitamente discriminatórias já que se baseiam na premissa de um Estado judeu para o povo judeu. Em consequência, discrimi­nam aos não-judeus, em concreto aos palestinos que viveram nestas terras geração depois de geração. Em alguns casos, garantem explicitamente um tratamento preferencial aos cidadãos judeus em esferas como a educação, a moradia pública, a saúde e o trabalho [19].

Atualmente, oculta-se, ao menos, tanta informação como a que se divulga. As duras condições nas quais devem sobreviver os palestinos raras vezes se refletem nos meios de comunicação. E menos ainda em notícias unidas às políticas aplicadas pelo governo e o exército israelenses. Por exemplo, na Cisjordânia, um palestino só dispõe de 50 m3 de água ao ano para cobrir todas suas necessidades: beber, lavar-se, cozinhar, agricultura, indústria, etc. No entanto, cada colono ilegal dispõe de 2.400 m3 de água ao ano. Mas, ademais, são os palestinos os que financiam a água, porque pagam mais do dobro que um israelense pela mesma quantidade. Com a eletricidade sucede algo similar, Israel destruiu a única empresa que produzia eletricidade na Palestina e lhes impediu de comprar novos geradores pelo que têm que a comprar tudo de Israel pelo dobro do preço que paga um israelense [20].

O conflito palestino-israelense tem-se enquistado na agenda mediante o formato de difundir laconicamente partes de guerra de mortos e feridos. Quando nos chega um protagonista palestino com nomes e sobrenomes é porque temos as imagens de vídeo prévias a seu martírio, nunca aparecem os palestinos que lutam para sobreviver mediante a cooperação e a ajuda mútua.

O silenciamento também se aplica às vozes que se levantam denunciando a política israelense. Em julho de 2006, dois prêmios Nobel de Literatura, José Saramago e Harold Pinter, junto a outros dois escritores de prestígio internacional, John Berger e Noam Chomsky, difundiram um escrito titulado “Em defesa do povo palestino” [21]. Na imprensa espanhola só mereceu uma carta ao diretor do El País [22]. E isso apesar de se fazer pública em pleno massacre de um povo, uma guerra regional entre Israel e Líbano que afetava a vários países e toda a região, a crise no Conselho de Segurança da ONU e milhares de cidadãos manifestando nas ruas. A denúncia destes destacados intelectuais ficou como uma carta ao diretor, como se fosse uma queixa do vizinho pela recolhida municipal dos lixos. Isto contrasta com o trato diferente que teve, em 2003, um desses Nobel, José Saramago, quando escreveu umas breves linhas criticando umas condenações a morte em Cuba. Então mereceu o destaque nesse mesmo jornal e um privilegiado espaço como artigo de opinião que ademais foi recolhido por todos os meios e agências.


*Pascual Serrano é jornalista. Este texto é um extrato do capítulo referente à Ásia de seu livro Desinformación. Como los medios ocultan el mundo, Península, 2009.

Notas
[1] El País, 26-6-2007.
[2] Agustín Velloso. Entrevista con el autor.
[3] Mónica G. Prieto. Entrevista con la autora.
[4] http://www.electronicintifada.net/.
[5] G. Prieto, M, “¿Se puede reescribir la historia?”, El Mundo, 23-4-2008.
[6] Chomsky, N, Piratas y emperadores. Terrorismo internacion
[7] Ver http://www.ifamericansknew.org/media/net-report.html.
[8] El Mundo, 10-6-2006.
[9] El País, 1-3-2003.
[10] Ramonet, I, “Por una resistencia de masas no violenta contra Israel”, entrevista con el líder palestino Mustafá Barghouti, Le Monde Diplomatique, mayo 2008.
[11] Editorial, El País, 30-1-2007.
[12] Editorial, El País, 10-6-
[13] Tele 5, 26-6-2006.
[14] El País, 19-8-2006.
[15] Mónica G. Prieto, Entrevista con la autora.
[16] bídem.
[17] Ibídem.
[18] Véase nota 10.
[19] Informe de Amnistía Internacional, de 2001: Racism and the Administration of Justice (Racismo y el Minis terio de Justicia).
[20] Véase nota 10.
[21] Se puede encontrar en Rebelion y http://www.rebelion.org/noticia.php?id=34982.
[22] El País, 21-7-2006.
o original em espanhol pode ser lido em: http://www.revistapueblos.org/spip.php?article2440

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