Tuesday, March 19, 2013

De Bergoglio a Francisco



por Atilio Boron,  diretor do Programa Latino-americano de Educação à Distância em CiênciasSociais (PLED), Buenos Aires, Argentina. Traduzido por Vinicius C. para o Batalha de Ideias.

Pouco pode ser agregado ao muito que já se disse sobre o Papa Francisco desde sua surpreendente elevação ao trono de São Pedro. Tratarei de sintetizar esta breve nota em torno de três eixos: (a) as acusações sobre sua atuação durante a ditadura cívico-militar genocida; (b) sua política como Arcebispo de Buenos Aires e presidente da Conferência Episcopal; (c) o possível impacto de seu pontificado sobre a realidade sócio-política da América Latina.

Em relação ao primeiro ponto é indiscutível que sua conduta se enquadrou, em termos gerais, nas deploráveis linhas estabelecidas pela hierarquia católica. Não foi um monstro como Christian von Wernich, ativo participante na comissão de delitos de lesa humanidade e por isso condenado pela justiça argentina; ou um troglodita medieval como o bispo castrense Antonio Basseoto, que propôs que se pendurasse uma pedra de moinho no pescoço do Ministro da Saúde Ginés Gonzales García e que se o atirasse ao mar por ter recomendado a utilização de preservativos. Tampouco foi uma instância cristã como os casos dos monsenhores Enrique Angelelli e Carlos Horacio Ponce de León, o Pai Carlos Mugica, os sacerdotes palotinos ou as freiras francesas Léonie Duquet e Alice Domon, todos assassinados pela ditadura; ou como os monsenhores Miguel Hesayne, Jorge Novak e Jaime de Nevares, duros críticos do regime militar. O então provincial da Companhia de Jesus teve uma conduta reprovável em relação a dois de seus subordinados diretos, os sacerdotes Francisco Jalics e Orlando Virgilio Yorio, quem exerciam seu trabalho pastoral em uma vila do Bajo Flores e foram sequestrados e torturados pela ditadura diante da inação de seu superior que os privou de sua proteção. Alguns depoimentos, como o de Alicia Oliveira, recusam estas críticas assinalando sua ativa colaboração para salvar a vida dos clérigos e laicos em perigo. Mas a evidência documental -que não é o mesmo que uma opinião- aportada nestes dias por Horacio Verbitsky ao Página/12 ou o que escreveu um eminente católico como Emilio F. Mignone qualificam-no como um pastor que entregou “suas ovelhas ao inimigo sem as defender nem as resgatar”, em um caso ao menos de um neto que foi apropriado pelos repressores mantendo oculta esta informação por anos. O mais provável é que ambas atitudes sejam verdadeiras, mas os bons gestos destacados por alguns não são suficientes para contrastar a gravidade dos outros. Em um país no qual todos sabiam dos crimes perpetrados pelo terrorismo de estado não é possível alegar ignorância, muito menos um sacerdote que administrava o sacramento da confissão e em permanente contato com a maioria das pessoas. Em seu momento Bergoglio pediu perdão em nome da Igreja “por não ter feito o suficiente" para preservar os direitos humanos ante a barbárie do terrorismo de estado; deveria tê-lo pedido, em vez disso, pelo explícito apoio que a hierarquia eclesiástica deu aos genocidas e não pelo pouco que fez para combatê-los. Neutralidade ou tolerância ante o terrorismo de estado? Hum!, recordemos o que diz Dante na Divina Comédia: “o círculo mais horrendo do inferno está reservado aos que em tempos de crise moral optam pela neutralidade.”

Mas suponhamos que um exame exaustivo e imparcial aponte a absoluta inocência de Bergoglio nos anos de chumbo. Que podemos dizer de sua atuação durante a reconstituição democrática posterior à ditadura? No sentido da contra-reforma lançada por João Paulo II com o apoio e beneplácito de Ronald Reagan e Margaret Thatcher, Bergoglio associou-se às tendências mais reacionárias da igreja argentina, o que não é pouco dizer. Formado no peronismo de direita, militante da Guarda de Ferro em sua juventude, durante seu gerenciamento como Cardeal Primado da Argentina se alinhou inequívoca e sistematicamente na contramão de todas as boas causas: opôs-se –sem sucesso- ao casamento igualitário; reagiu com o furioso fanatismo de Tomás de Torquemada ante a mostra do artista plástico León Ferrari, que teve que ser retirada antes de tempo; tem combatido com ferocidade tudo relacionado à educação sexual, o controle da natalidade, a descriminalização do aborto e os direitos das minorias sexuais; mantém dentro da Igreja, e assim lhes estende sua proteção, criminosos como Von Wernich, Edgardo Storni e Julio César Grassi (condenados estes dois últimos por pedofilia); atenta contra o caráter laico do estado democrático e defende com enjundia as mordomias que tem a Igreja em matéria financeira e no controle sobre o processo educacional, em aberta violação ao disposto pela Constituição de 1994. Em conclusão, um papa austero e afastado do boato do Vaticano com uma marcada preocupação pela sorte dos pobres, mas profundamente conservador. Isto é inovador? Em nada. O conservadorismo popular tem longa história, e não só na América Latina. Diferentemente de sua variante elitista e aristocratizante, os valores e interesses tradicionais que sustentam uma ordem social injusta se reforçam aproveitando da ignorância e credulidade dos grupos populares ganhados pela prédica eclesiástica. É um conservadorismo plebeu, excêntrico em suas formas, mas que presta um valioso serviço às classes dominantes, como o prova a obscena explosão de júbilo dos genocidas nos julgados quando se conheceu a designação de Bergoglio como pontífice; ou a desbordante alegria das mais diversas expressões e variados representantes da direita argentina; ou a fenomenal campanha apologética dos jornais da burguesia e do império –principalmente Clarín e La Nación, este último marcando a penosa involução moral de um jornal fundado por Bartolomé Mitre, maçom provado e confesso- ante as notícias procedentes de Roma. Com semelhantes amigos, como achar que Francisco vai imitar ao santo de Assis, cuja renúncia à riqueza e aos bens materiais foi total e absoluta? Em companhia destes ricos confrades, a “opção pelos pobres” dificilmente pode ser algo mais que um longínquo acompanhamento de seus sofrimentos e privações, mas tratando de ensinar-lhes quem é que os condena a transitar por este vale de lágrimas, padecimentos e infortúnios. Faz quase meio século que Dom Helder Câmera, bispo de Olinda e Recife explicou muito bem esta contradição: "Se dou de comer aos pobres, dizem que sou um santo. Mas se pergunto por que os pobres passam fome e estão tão mal, dizem que sou um comunista." Não basta a humildade nem a confraternização com os pobres: trata-se de lhes ensinar que a pobreza não é resultado de um desígnio divino ou de um capricho da natureza mas um produto histórico da sociedade capitalista, máquina implacável de fabricar pobreza e miséria e à qual a Igreja jamais teve a ousadia de condenar apesar de sua intrínseca malignidade. Dos ditos e dos fatos de Francisco não se depreende que isto vá ocorrer. É bom que o escravo se rebele contra seu amo, mas como dizia Lenin, a mudança só se produzirá quando aquele se rebele contra a escravatura, contra o sistema e não só contra um de seus agentes. Alentará Francisco a rebelião anticapitalista dos pobres, dado que dentro do capitalismo sua sorte está jogada? Nada em sua biografia autoriza a pensar nesse curso de ação; o mais provável será que estimule sua mansidão e eternize seu submissão. É que a “opção pelos pobres” da Igreja que surge da contra-reforma liderada por João Paulo II e que varreu com os avanços do Concilio Vaticano II não é a que propunha a Igreja de Carlos Mugica, Jaime de Nevares, Miguel Hesayne, Oscar Arnulfo Romero (Arcebispo de San Salvador), Sergio Méndez Arceo (Bispo de Cuernavaca, México), Samuel Ruiz García (Bispo de San Cristóbal, Chiapas), Pedro Casaldáliga e Dom Helder Câmera (Brasil) e Ernesto Cardeal (Nicarágua) ou, em nossos dias, os teólogos da libertação como Frei Betto, Leonardo Boff, Gustavo Gutiérres ou Jon Sobrino.

Será seu pontificado uma remake do de João Paulo II? É muito pouco provável. O Papa Wojtila foi um produto de finais dos setentas, quando o mundo era muito diferente ao de hoje. Foi o aríete que a burguesia imperial precisava para derrubar a União Soviética e os países do Leste Europeu. Mas essa estratégia foi eficaz porque aqueles regimes padeciam de um avançado estado de decomposição moral, política, econômica e social. Na realidade, João Paulo limitou-se a desencadear a investida final a um imenso edifício que já se vinha abaixo produto de suas próprias contradições. Hoje o mundo mudou muito: o imperialismo já não tem, tal como reconhecem seus próprios intelectuais orgânicos, a gravitação do passado. Os rivais são mais numerosos e diversificados, e economicamente bem mais fortes que a URSS e os países de Europa Oriental. Seus aliados, ademais, são mais débeis e vacilantes. A Igreja, por sua vez, viu-se debilitada por uma interminável sucessão de escândalos e carece da credibilidade que ganhara nos anos de João XXIII. Ademais, se quisesse lançar todo seu peso para desestabilizar os processos bolivarianos na Venezuela, Bolívia e Equador ou as experiências de transformação política em curso em outros países da região a resposta seria muito diferente a que há mais de trinta anos se verificou no Leste europeu. Aqui, trata-se de processos que contam com um enorme apoio popular que nem remotamente existia lá, e portanto o projeto das direitas latino-americanas – organizadas, orientadas e financiadas pelo império- de reutilizar o aríete eclesiástico que tão bons resultados lhe dera na Europa Oriental para acabar com os governos progressistas e de esquerda na região terminaria em um rotundo fracasso. A “revolução de veludo” da Tchecoslováquia não tem qualquer relação com a revolução bolivariana da Venezuela, Evo Morales não é Lech Valesa, e Correa não é Ceacescu. Não só os processos e a época histórica são diferentes: os enormes problemas que enfrenta hoje a Igreja (crise financeira, delitos econômicos do Banco Vaticano, alianças com mafiosos, pedofilia e seus julgamentos, o celibato sacerdotal, a incorporação da mulher ao sacerdócio e o postergado aggiornamiento reclamado por João XXIII) dificilmente permitirão que Francisco dedique demasiada atenção ao que ocorre nos países de Nossa América. É um bom administrador e terá que pôr a casa em ordem. É também um político muito hábil, e sabe que logo deverá convocar um Concilio que permita destravar velhas disputas que estão corroendo a Igreja e a isolando-a cada vez mais do mundo real. Há exatamente quinhentos anos Nicolau Maquiavel diagnosticava no Príncipe que para se salvar a Igreja precisava uma revolução. Tal coisa não ocorreu. Quatro anos mais tarde, em 1517, estourava a reforma protestante de Martinho Lutero, e a revolução ficou congelada. Agora, a revolução é muitíssimo mais urgente e necessária que antes. Se Francisco fracassa neste empenho a sorte das duas vezes milenária instituição se verá muito seriamente comprometida. Não se deve enganar com as cifras manejadas pela imprensa nestes dias: desses 1,2 bilhão de católicos em todo mundo os realmente praticantes são uma ínfima minoria, que ademais encolhe a cada dia. Pretender socavar os processos emancipatórios em curso na América Latina e Caribe seria uma perda de tempo, o passaporte para uma segura derrota e um esforço que desviaria o Papado de seu desafio fundamental. Talvez por isso Leonardo Boff confia que, apesar de seus antecedentes, Francisco se absterá de seguir o curso que a direita e o imperialismo lhe instam a seguir e elegerá em vez disso o caminho da reforma. Em poucos anos a história oferecerá seu veredicto.




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