Thursday, August 30, 2012

Cúpula do Movimento dos Não Alinhados, Irã e Síria: um golpe de Estado contra o Ocidente?

por Mahdi Darius Nazemroaya, traduzido por Vinicius C para o Batalha de Ideias.

A próxima cúpula do Movimento dos Países Não Alinhados (MNA) será realizada em Teerã de 26 a 31 de agosto em 2012. O MNA e sua cúpula costumam ser ignorados no mundo atlantista dos Estados Unidos e da OTAN, mas o encontro deste ano chamou a atenção dos atlantistas e sua imprensa. A razão é que o local da cúpula do MNA tem perturbado o stablishment político em Washington, DC.

O governo dos EUA está muito apreensivo e chegou a repreender os líderes do MNA que se reúnem no Irã. A porta-voz do Departamento de Estado dos EUA, Victoria Nuland - esposa do arqui-imperialista e cofundador do neo-con Projeto do Novo Século Americano (PNAC), Robert Kagan - pediu ao novo presidente do Egito, Mohamed Morsi, e até mesmo ao Secretário-Geral da ONU Ban Ki-Moon, servo particular de Washington, a não viajar para Teerã. Nuland e o Departamento de Estado dos EUA declararam amargamente que o Irã não é merecedor de tais "presenças de alto nível". Os EUA, no entanto, são obrigados a sorrir e aguentar a reunião dos líderes mundiais em Teerã.
O que vai acontecer é uma extravagância internacional, sem a OTAN e seus principais membros de facto - Austrália, Japão, Nova Zelândia e Coreia do Sul - na região da Ásia-Pacífico e Israel. Representantes da África, Ásia, Caribe e América Latina estarão lá com força total. Os chineses, que têm o estatuto de observadores no MNA, estarão lá. Os russos, que não fazem parte do MNA, foram convidados como convidados especiais do Irã, e serão representados por Konstantin Shuvalov, embaixador russo itinerante e enviado de Vladimir Putin. Mesmo a Turquia, sem ser membro do MNA, recebeu um convite de Teerã. Para ajudar os palestinos, ao Hamas também será dado um assento especial na mesa de acordo com um convite enviado do Irã ao primeiro-ministro palestino Ismail Haniyeh para participar na cúpula lado a lado com o fantoche estadunidense-israelense Mahmoud Abbas. Juntamente com a Federação Russa, a maior parte dos membros da Comunidade de Estados Independentes (CEI) comparecerá ou como membros plenos ou como observadores. Ao lado dos chineses e russos, os outros três membros do grupo dos BRICS – Brasil, Índia e África do Sul – que está se tornando o novo motor a moldar o mundo, também estarão presentes.

A Cúpula MNA, Irã e Síria: um golpe de Estado contra o Ocidente?

A reunião de líderes do MNA será sem dúvida um evento importante para o prestígio e o status internacional do Irã. Durante quase uma semana, Teerã será um centro-chave do mundo, ao lado dos escritórios da ONU em Nova York e Genebra. Não só o Irã será o ponto de encontro para uma das maiores reuniões de líderes mundiais como também lhe será entregue a presidência da organização pela grande potência árabe, o Egito. O Irã manterá esta posição como o líder do MNA durante os próximos anos e será capaz de falar em nome da organização internacional. Até certo grau, esta posição permitirá Teerã a ter mais influência nos assuntos mundiais. Pelo menos esta é a visão em Teerã, onde nada do significado do MNA foi perdido para os políticos e responsáveis iranianos que um depois do outro destacam a importância da cúpula do MNA para o seu país.
O MNA é a segunda maior organização internacional do mundo, depois das Nações Unidas. Com 120 membros plenos e 17 membros observadores, inclui a maior parte dos países e governos do mundo. Cerca de dois terços dos estados-membros da ONU são membros plenos do MNA. A União Africana, a Organização de Solidariedade do Povo Afro-Asiático, a Commonwealth de Nações, o Movimento Independentista Nacional Hostosiano, a Frente de Libertação Socialista Nacional Kanak, a Liga Árabe, a Organização de Cooperação Islâmica, o South Center, as Nações Unidas e o Conselho Mundial da Paz também são observadores.
Os EUA e a OTAN, que muito generosa e equivocadamente utilizam a expressão "comunidade internacional" quando se referem a si próprios, são realmente uma minoria global que se eclipsa em comparação com o agrupamento internacional formado pelo MNA. Quaisquer acordos ou consensos do MNA representam não só o grosso da comunidade internacional como também a maioria internacional não-imperialista ou aqueles países que tradicionalmente têm sido encarados como os "pobres". Ao contrário da ONU, a "maioria silenciosa" terá a sua voz ouvida com pouca alteração e perversão dos confederados da OTANstão.
A reunião do MNA em Teerã significa um evento importante. Demonstra que o Irã na verdade não está isolado internacionalmente como os Estados Unidos e as grandes potências da União Europeia, tais como o Reino Unido e a França, gostam de projetar continuamente. Os grandes meios de comunicação atlantistas estão se contorcendo para explicar esta situação e os israelenses estão claramente inquietos.
Não há dúvida de que o Irã utilizará a reunião internacional em seu benefício e aproveitará o MNA para reforçar o apoio às suas posições internacionais e para ajudar a tentar dar fim à crise na Síria. O assédio à Síria apoiado pelos EUA será denunciado na conferência do MNA e porradas diplomáticas serão dadas nos EUA e seus clientes e satélites. Já a apressada conferência ministerial acerca dos combates na Síria organizada em Teerã pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros iraniano antes da cúpula de emergência efetuada pela Organização de Cooperação Islâmica em Meca foi um prelúdio para o apoio diplomático que o Irã dará à República Árabe Síria na cúpula de 2012 do MNA.
Apesar da oposição argelina e iraniana, a Síria foi expulsa da Organização de Cooperação Islâmica (OCI) a pedido da Arábia Saudita e das petro-monarquias. Ainda que a cúpula de emergência da OCI em Meca tenha sido uma bofetada política e diplomática para Damasco, espera-se que a situação seja muito diferente na cúpula do MNA em Teerã. Os sírios também estarão presentes em Teerã e aptos a enfrentar seus antagonistas árabes das petro-monarquias do Golfo Pérsico.

A gênese do Movimento dos Não Alinhados e do Terceiro Mundo

O Movimento dos Países Não Alinhados e conceito de "Terceiro Mundo" tem suas raízes no período de descolonização depois da Segunda Guerra Mundial, quando os impérios da Europa Ocidental começaram a desintegrar-se e encerrar formalmente. Isto só representou um fim superficial à dominação dos mais fracos pelos mais fortes. Na realidade, o colonialismo foi apenas substituído por “ajuda externa” e empréstimos pelos impérios em declínio. Neste contexto, os britânicos poderiam oferecer ajuda às suas antigas colônias, enquanto os franceses e holandeses fariam o mesmo com suas ex-colônias para manter o controle sobre elas. Desta forma, a exploração nunca terminou de fato e o mundo foi mantido num estado de desequilíbrio. As Nações Unidas também foram reféns das grandes potências e ignorou muitas questões importantes sobre lugares como a África e a América Latina.
O que levou à formação do MNA foi primeiramente uma rejeição à dominação e interferência dos países do "Norte global" - um termo que será definido em breve – e o conceito de coexistência que a Índia e a China forjaram em 1954, quando Nova Deli reconheceu o Tibete como parte da China.
O MNA começou como uma iniciativa asiática, que procurou abordar as tensas relações entre a China e os EUA de um lado e as relações da China com outras potências asiáticas, por outro lado. Os novos estados independentes da Ásia queriam evitar qualquer elevação do tom da Guerra Fria em seu continente, especialmente depois da desastrosa intervenção militar estadunidense na Coreia ou a manipulação da Índia e da Indonésia como estados-tampão contra a República Popular da China. A iniciativa asiática foi rapidamente ampliada e ganhou o apoio da República Federal Socialista da Iugoslávia, Egito e dos vários líderes dos movimentos nacionalistas de independência na África, que lutavam por sua libertação contra os países da OTAN como a Grã-Bretanha, França e Portugal.
O presidente iugoslavo Josip Broz Tito, o primeiro-ministro indiano Jawaharlal Nehru e o presidente egípcio Gamal Abdel Nasser foram as três principais forças por trás da criação da organização. Kwame Nkrumah, líder pan-africano marxista de Gana e Ahmed Sukarno, o líder da Indonésia, também poriam força no MNA e se juntariam a Tito, Nehru e Nasser. Esses líderes e seus países não viam a Guerra Fria como uma luta ideológica. Isso foi uma cortina de fumaça. Para suas perspectivas, a Guerra Fria era uma disputa de poderes e a ideologia foi meramente usada como justificativa.

 Os diferentes mundos da Guerra Fria

A palavra "não-alinhamento" foi usada pela primeira vez no cenário mundial por Vengalil Krishnan Krishna Menon, embaixador da Índia na ONU, enquanto o termo "Terceiro Mundo" foi usado, pela primeira vez, pelo estudioso francês Alfred Sauvy. Terceiro Mundo é um termo muito debatido na política e alguns acham que é desregulatório e etnocêntrico. Para o ponto de confusão, a categoria Terceiro Mundo está inextricavelmente interligada com o conceito de não-alinhamento e do MNA.
Tanto o MNA e, especialmente, o Terceiro Mundo são mal e descuidadamente usados ​​como sinônimos para os países em desenvolvimento e subdesenvolvidos ou como indicadores econômicos. Os países mais carentes do Terceiro Mundo eram ex-colônias ou estados menos abastados em lugares como África e América Latina que foram vítimas do imperialismo e da exploração. Isto levou à identificação geral, ou o erro de identificação, do MNA e de países do Terceiro Mundo com os conceitos de pobreza. Isso é errado e não representa o que qualquer um dos termos significa.
Terceiro Mundo era um conceito que se desenvolveu durante o período da Guerra Fria para distinguir os países que não faziam parte formalmente do Primeiro Mundo, que foi formado pelo Bloco Ocidental, e o Bloco do Leste / Soviético e do mundo comunista que formou o chamado Segundo Mundo. Em teoria, a maioria desses terceiromundistas eram neutros e juntar-se ao MNA era uma expressão formal dessa posição de não-alinhamento.
Além de serem considerados segundomundistas, os estados comunistas como a República Popular da China e de Cuba têm sido amplamente classificados como partes do Terceiro Mundo e considerou-se-os como partes da terceira força global. A perspectiva do presidente Mao, definida através de seu conceito de Três Mundos, também apoiou a classificação dos Estados comunistas como Angola, China, Cuba e Moçambique como terceiromundistas, porque não pertenciam ao bloco soviético como a Bulgária, Tchecoslováquia, Hungria e Polônia.
Nas interpretações mais ortodoxas sobre o significado político do Terceiro Mundo, o Estado comunista da Iugoslávia era uma parte do Terceiro Mundo. No mesmo contexto, o Irã, devido aos seus laços com a OTAN e sua participação na Organização do Tratado Central (CENTO), controlada pelos EUA, era politicamente uma parte do Primeiro Mundo até a Revolução Iraniana, em 1979. Assim, a referência à Iugoslávia como um país de Segundo Mundo e ao Irã como um país de Terceiro Mundo antes de 1979 está incorreta.
O termo Terceiro Mundo também deu origem à categoria de "Sul Global". Este nome é baseado na situação geográfica do Terceiro Mundo ao sul do mapa como oposição à situação geográfica ao norte do Primeiro e do Segundo Mundos, ambos começaram a ser coletivamente chamados de "Norte global". Os conceitos Norte e Sul passaram a substituir lentamente os termos Primeiro, Segundo e Terceiro Mundo, especialmente no fim da Guerra Fria e a partir da queda da União Soviética.

Bandung, Belgrado e a formação dos Não-Alinhados

O MNA foi estruturado quando os terceiromundistas que estavam entre os atlantistas e os soviéticos durante a Guerra Fria tentaram formalizar a sua terceira via ou força. O MNA nasceu depois da Conferência de Bandung, em 1955, o que enfureceu os EUA e o Bloco Ocidental que o viam como um entrave aos seus interesses globais.
Contrariamente às opiniões do Bloco Ocidental, a União Soviética era muito mais predisposta a aceitar o MNA. O premiê soviético Nikita Khrushchev, em 1960, chegou a propor que a ONU fosse gerida por uma "troika" composta pelo Primeiro, Segundo e Terceiro Mundos em vez de seu secretariado-geral influenciado pelo Ocidente na cidade de Nova York, que foi conivente com os EUA na remoção do primeiro-ministro Patrice Lumumba do poder na República Democrática do Congo, assim como outros líderes mundiais independentes.
Fidel Castro em Cuba, sede da cúpula do MNA em 1979, quando o Irã aderiu como octagésimo-oitavo membro, argumentou que o Segundo Mundo e os movimentos comunistas eram os "aliados naturais" do Terceiro Mundo e do MNA. As atitudes favoráveis ​​de Nasser e Nehru para com a União Soviética e o apoio do bloco soviético a vários movimentos de libertação nacional também dão credibilidade para a colocação de Cuba sobre a aliança entre Segundo e Terceiro Mundos contra a exploração capitalista e as políticas imperialistas do Primeiro Mundo.
A primeira cúpula do MNA seria realizada na capital iugoslava de Belgrado, em 1961, sob a presidência do Marechal Tito. A cúpula em Belgrado pediria o fim de todos os impérios e da colonização. Tito, Nehru, Nasser, Nkrumah, Sukarno e outros líderes do MNA exigiriam o fim da dominação colonial dos europeus ocidentais na África e deixassem os povos africanos decidirem seus próprios destinos.
A conferência preparatória também foi realizada alguns meses antes, no Cairo, por Gamal Abdel Nasser. Nas reuniões preparatórias, o não-alinhamento foi definido por cinco pontos:
(1) Os países não alinhados devem seguir uma política independente de coexistência de nações com variados sistemas políticos e sociais;
(2) os países não alinhados devem ser consistentes no seu apoio à independência nacional;
(3) os países não alinhados não devem pertencer a uma aliança multilateral feita num contexto político das superpotências ou dos grandes países;
(4) Se os países não alinhados têm um acordo bilateral com grandes potências ou pertencem a um pacto de defesa regional, estes acordos não deverem ser concluídos no contexto da Guerra Fria;
(5) Se os Estados não alinhados cederem bases militares para uma grande potência, estas bases não devem ser concedidas no contexto da Guerra Fria.
Todas as conferências do MNA nos anos seguintes abrangeriam questões vitais, como a inclusão da República Popular da China na ONU, os combates na República Democrática do Congo, as guerras africanas de independência contra a países da Europa Ocidental, a oposição à apartheid e ao racismo e o desarmamento nuclear. Além disso, o MNA foi tradicionalmente hostil ao sionismo e condenou a ocupação dos territórios palestinos, libaneses, sírios e egípcios por Israel, o que lhe rendeu a aguerrida e interminável aversão de Tel Aviv.

Tornando o MNA relevante novamente

Muitos perguntam qual a relevância do Movimento dos Não Alinhados hoje. Desde o fim da Guerra Fria, a força do MNA tem sido corroída enquanto os EUA, as reformas econômicas neoliberais, o FMI e o Banco Mundial têm ganhado cada vez mais controle sobre os membros do MNA. Em muitos casos, os membros do MNA voltaram para a condição de colônias de facto em todos os aspectos, exceto o nome. Muitos membros do MNA, como Belarus, Colômbia, Etiópia e Arábia Saudita, são na verdade estados alinhados.
Não há dúvidas de que o Irã quer tornar o MNA novamente relevante para usá-lo para combater a ordem atlantista em expansão. Bem como os russos e os chineses. O MNA afinal deu um importante apoio diplomático ao Irã na politizada disputa nuclear com os atlantistas. O MNA é também a alternativa mais próxima à pró-atlantista e interessada Nações Unidas.
A cúpula do MNA será aproveitada pelo Irã e seus aliados para tentar desenvolver algum tipo de estratégia para lutar e contornar as sanções unilaterais dos EUA e da União Europeia contra a economia iraniana e para mostrar aos atlantistas nos EUA e na UE que seus poderes no mundo são limitados e estão em declínio. Um pequeno passo nessa direção está no fato de o Irã começar as negociações com 60 países do MNA para derrubar os requisitos bilaterais de visto com o Irã. Uma declaração universal também pode ser liberada pedindo que as sanções anti-iranianas sejam suprimidas ou alteradas. Outras medidas incluem propostas para uma estrutura financeira global nova e alternativa, que neutralizaria o domínio atlantista sobre as transações financeiras internacionais.
Um acontecimento importante na cúpula do MNA será a chegada de Morsi a Teerã, como um sinal do aquecimento das relações. Os laços entre Cairo e Teerã não serão restaurados da noite para o dia, porque há restrições sobre Morsi. Aconteça o que acontecer entre o Egito e o Irã na cúpula do MNA em Teerã será os passos iniciais de um lento processo. Os egípcios estão se esforçando para não contrariar seus patrões ocidentais e árabes e os iranianos optaram por serem pacientes. A presença de Morsi no Irã, no entanto, ainda é simbolicamente muito importante. Teerã de fato tem motivos para estar muito otimista quanto todas as suas estrelas estão se alinhando na gala do MNA.
Os círculos diplomáticos estão olhando para o Egito, na véspera da cúpula do MNA. Antes, foi anunciado que Morsi iria para o Irã, era esperado que o vice-presidente egípcio Mahmoud Mekki representasse o Egito na cúpula do MNA como uma demonstração do estranhamento entre Egito e Irã.
A relação do Cairo com Teerã e que se desenvolve a partir da viagem de Morsi ao Irã é o que todos os xecados, Israel e os EUA estão observando cuidadosamente.
Alguns analistas estão afirmando que a postura do Egito poderia "consolidar ou quebrar" o projeto de isolamento do Irã, especialmente em termos sectários envolvendo uma divisão xiita-sunita. Isto é, na verdade, uma mentira, porque não há nada de especialmente significativo que o Egito possa fazer para quebrar ou isolar o Irã. Afinal, Cairo e Teerã essencialmente não têm vínculos desde 1980 e Mubarak foi um aliado incondicional dos EUA que colocou o Egito para trabalhar com a Arábia Saudita e Israel para minar a influência iraniana.
No pior cenário, a relação entre os dois países vai ficar como foi durante a era Mubarak. Esta não é uma situação de perda para o Irã, ainda que a situação na Síria tenha catalisado o desejo iraniano para uma aproximação mais veloz. As relações egípcio-iranianas não têm para onde ir a não ser para cima.
Os protestos na Praça Tahrir (Libertação) que destronaram Mubarak e ajudaram na realização das eleições que levaram a Irmandade Muçulmana egípcia ao poder são parte do que os funcionários iranianos chamam de "despertar islâmico" em contraste a uma "Primavera Árabe." O Irã não escondeu sua crença de que o Egito quer e pode, eventualmente, formar um novo eixo regional depois de o ditador vitalício Mubarak ter sido expulso do poder. Se existe um homem que pode dar o salto a partir da concepção de uma primavera árabe a um despertar islâmico, pelo menos publicamente, é o presidente Morsi por meio de uma aliança com o Irã.
A 8 de agosto, o Irã enviou Hamid Baqaei para entregar o convite de participação da cúpula do MNA em Teerã para Morsi. Ao longo do caminho, a imprensa internacional e especialistas aumentaram a classificação governamental de Baqaei, por não terem percebido ou mencionado que ele era o mais antigo dos 11 juniores ou assistentes de vice-presidentes e, essencialmente, o ministro responsável pelos assuntos executivos da presidência iraniana.
O primeiro vice-presidente Mohammed Reza Rahimi-, ex-governador da província iraniana do Curdistão e ele próprio um ex-vice-presidente júnior, é o vice-presidente sênior do Irã. Independentemente disso, a visita de Baqaei ao Cairo como um enviado presidencial e assessor presidencial próximo foi importante. O Irã poderia ter entregue a carta-convite para o Egito pela sua seção de interesse na Embaixada da Suíça ou outros canais diplomáticos, mas fez um gesto significativo enviando Baqaei diretamente para o Egito. O movimento deixou todos os países que conspiram contra o Irã e a Síria muito receosos. Para esses países, a confraternização do MNA em Teerã vai se concentrar no Egito, Irã e Síria.

Os movimentos da Arábia Saudita, Catar e do FMI no Egito estão ligados à Cúpula do MNA em Teerã?

Tanto a Arábia Saudita quanto o Qatar ofereceram ao Egito uma ajuda financeira antes das visitas de Morsi a Pequim, onde ele é esperado para pedir uma ajuda ao país. Além da ajuda saudita e catariana poder ser utilizada para moldar a forma como a Irmandade Muçulmana egípcia interage com o Irã, as ofertas de ajuda dos petro-déspotas de Doha e Riad são parte da competição árabe sobre influência no Cairo.
Morsi é amplamente visto como um homem do Qatar e as relações entre Riad e Cairo não têm sido fáceis há algum tempo. A embaixada saudita no Cairo chegou a ser temporariamente fechada depois da irrupção dos protestos egípcios contra a Arábia Saudita. Mais importante, a Casa de Saud opôs-se a Morsi em apoio ao capanga de longa data de Mubarak, Ahmed Shafik, durante as eleições presidenciais egípcias. Além disso, a Casa de Saud tem apoiado os seus próprios clientes políticos dentro do Egito contra a Irmandade Muçulmana. Os clientes egípcios da Casa de Saud, o Partido Nour e sua coalizão parlamentar chamada Aliança para o Egito (Bloco islâmico), estão em segundo lugar, atrás da coalizão parlamentar da Irmandade Muçulmana, a Aliança Democrática.
Apesar de Doha e Riad servirem os interesses dos EUA, os dois xecados têm uma rivalidade um com o outro. Esta rivalidade Catar-Arábia Saudita acendeu-se novamente depois de uma breve pausa, na qual os dois lados invadiram a ilha-reino do Bahrein para apoiar o regime de Al Khalifa e trabalharam juntos contra os governos da Líbia e da Síria.
A rivalidade entre Saud e Al-Thani viu os dois lados apoiarem os diversos grupos armados na Líbia e combaterem as forças antigovernamentais durante a chamada Primavera Árabe (ou Despertar islâmico de acordo com Teerã). As eleições no Egito, onde Doha e Riad apoiaram lados diferentes, só adicionou combustível para o fogo do Qatar e da Arábia Saudita.
O emir do Qatar, Hamad bin Khalifa Al-Thani, fez questão de apoiar a Irmandade Muçulmana quase a qualquer momento como um meio de expandir a influência do Qatar. Poucos dias depois da derrubada de Mubarak, a Al Jazeera do Qatar mostrou grande clarividência quando lançou a Al Jazeera Mubasher Misr, um canal de notícias dedicado exclusivamente ao Egito. O Qatar e sua mídia colocaram peso na Irmandade Muçulmana egípcia, enquanto a Arábia Saudita e seus meios de comunicação não o fizeram.
Este também foi o motivo pelo qual a imprensa controlada pelos sauditas, como a Al Arabiya, continuou a elevar as críticas contra o presidente Morsi, mesmo depois das eleições no Egito. Para aliviar as tensões da Casa de Saud com o Egipto, Morsi fez sua primeira viagem internacional como presidente para a Arábia Saudita.
Além da cobertura de notícias favorável, acredita-se amplamente que o Qatar ajudou a financiar a Irmandade Muçulmana no Egito durante as eleições. Além disso, os investimentos do Qatar no Egito aumentaram 74%, de acordo com dados divulgados pelo Banco Central do Egito em julho de 2012. A 11 de agosto, Emir Al-Thani, e uma delegação do Catar também viajaram para o Egito para uma visita de um dia com Morsi. No dia seguinte, a 12 de agosto, Morsi educadamente demitiu ou "aposentou" o marechal de campo Tantawi, o chefe das Forças Armadas egípcias, e Sami Anan, o chefe do gabinete das Forças Armadas egípcias e o número dois de Tantawi. Depois da visita de Al-Thani, começaram a circular rumores também no Egito de que a Irmandade Muçulmana estava planejando arrendar o Canal de Suez para Emir Al-Thani, o que foi negado por Morsi e sua equipe presidencial.
Um resultado da visita de Emir Al-Thani ao Egito foi a do anúncio de que o Qatar deu ao Cairo dois bilhões de dólares (EUA). Na realidade, o Qatar só deu ao Egito 500 milhões de dólares (EUA) e disse que o restante será dado em parcelas, que se iniciarão depois da cúpula do MNA em Teerã. O cronograma de pagamento diz alguma coisa?
O momento em que o Fundo Monetário Internacional (FMI) visitou o Cairo para negociar um empréstimo, na véspera da cúpula do MNA em Teerã, também é suspeito. Depois de um ano de incerteza e de mendicidade, o Qatar e o FMI abriram seus bolsos para os egípcios (embora o Qatar tenha enviado algum dinheiro antes). O governo do Conselho Líbio de Transição chegou a oferecer um empréstimo financeiro, mesmo quando seus próprios cofres estão em desordem, como resultado da guerra da OTAN contra a Líbia e do assalto à tesouraria líbia e de seus ativos pelos atlantistas com a ajuda do economista neoliberal estadunidense tornado o "ministro do petróleo e das finanças" da Líbia, Ali Tarhouni. Quanto à Casa de Saud, entende-se que seus termos para uma ajuda financeira ao Egito incluem a continuidade das políticas anti-iranianas no Cairo.

Todos estarão observando Morsi em Teerã

As leituras sobre Morsi e a Irmandade Muçulmana, que governam sob o domínio do Partido da Liberdade e Justiça, variam. Por um lado, o governo egípcio manteve o fechamento das fronteiras para os palestinos na Faixa de Gaza. Ele também se comprometeu a honrar seus tratados internacionais, uma referência astuta a seu tratado de paz com Israel, que procura evitar mencionar Israel e prevenir um escândalo na imprensa. Por outro lado, Morsi fez gestos positivos a Teerã na cúpula emergencial da Organização de Cooperação Islâmica (OCI) em Meca, sobre a formação de um grupo de contato Ankara-Cairo-Riyadh-Teerã para discutir a crise na Síria e disse que quer introduzir emendas no tratado de paz egípcio com Israel.
Como a maioria dos políticos, Morsi tem aguado suas promessas eleitorais. Ele teve que andar numa linha tênue cercado por inimigos e competidores, enquanto trabalha lentamente para o acúmulo de poder. Quando ele foi eleito, houve um atraso no anúncio dos resultados da eleição egípcia. O marechal de campo Tantawi e a junta militar egípcia tiveram tempo para se decidirem se queriam manter Morsi como presidente ou impor uma nova rodada de lei marcial, enquanto estabelecessem à força o general próximo Ahmed Shafik como presidente civil do país.
Morsi está em desacordo com os comandantes militares do Egito, que são aliados de longa data de Israel e dos EUA, bem como aliados da Casa de Saud. Além de retirar os dois membros mais importantes da junta militar egípcia, Morsi também reverteu decisões militares egípcias para subordinar a presidência e emendar a Constituição do Egito pós-Mubarak. Este jogo de poder tem sido amplamente descrito como um contragolpe preventivo contra a junta militar egípcia. Doha pode ter apoiado a iniciativa para se certificar de que o seu cavalo de corrida, a Irmandade Muçulmana, se mantenha no poder, em oposição aos cavalos sauditas dos militares egípcios e do Partido Nour. Se o contragolpe foi um movimento feito no contexto das rivalidades Arábia Saudita-Qatar ou estritamente um esforço de Morsi e da Irmandade Muçulmana para conseguir uma liberdade política é a questão saudi-catariana de dez milhões de dólares.

Mudança política para o Oriente no Cairo?

Onde a política externa de Morsi irá depois da conferência do MNA em Teerã é outra questão importante. A partir de reuniões do MNA, será definido para onde ele vai. O medo da aproximação entre o Irã e o Egito certamente mantém um grande número de pessoas despertas à noite em Riad, Tel Aviv, Londres e Washington DC. Todo mundo está esperando para ver o que o Cairo e Teerã vão fazer e, para muitos, as expectativas de aproximação são elevadas, mas as alavancas e restrições que existem sobre Morsi não devem ser esquecidas.
Embora haja muito menos alarde e atenção à viagem de Morsi à China, o que ele fará lá também será muito importante. Já há quem diga que ele planeja deslocar lentamente a política externa do Cairo, longe do campo atlantista, com Washington como sua capital, em direção ao campo Euro-asiático que inclui China e Irã. Certamente, a ajuda externa chinesa vai reduzir a dependência do Egito sobre os atlantistas árabes e os petro-monarcas parceiros. Estamos lidando aqui com uma intrincada teia de múltiplas relações entre os diferentes grupos que interagem uns com os outros de maneiras diferentes e por relações dinâmicas.

Adendo - 25 de agosto de 2012

O não-eleito presidente da Autoridade Palestina, Mahmoud Abbas, ameaçou boicotar a cúpula do MNA depois que a mídia iraniana e o Hamas anunciaram que o primeiro-ministro Haniyeh, representante democraticamente eleito dos palestinos, estava indo participar da cúpula do MNA. Depois, o Ministério do Exterior iraniano divulgou um comunicado esclarecendo que Haniyeh nunca foi convidado para Teerã.

Thursday, August 23, 2012

Egito ignora os Estados Unidos



por M. K. Bhadrakumar*, traduzido por Vinicius C. para o Batalha de Ideias.


A decepção deve estar dominando em Washington. O Egito afasta-se da aliança com os EE.UU. e a amarga verdade já não se pode ocultar ou dissimular.

Washington não esperava que o “lado correto da história” se desenvolvesse desta maneira. A Primavera Árabe gerou um fruto estranho no Egito, uma pura raça, não como os híbridos da Tunísia, Líbia ou Iêmen.

Deve-se considerar o seguinte: o presidente Barack Obama foi um dos primeiros chefes de Estado que felicitou Mohammed Morsi por sua vitória eleitoral em maio. Obama rompeu o protocolo e chamou-o para cumprimentá-lo mostrando a ansiedade de Washington de desenvolver uma esplêndida relação com ele.

Em seguida, Obama escreveu uma carta a Morsi e enviou ao secretário adjunto de Estado, Williams Burns, ao Cairo para entregá-la pessoalmente. Depois de Burns, a secretária de Estado Hillary Clinton foi ao Cairo de novo para uma audiência com Morsi. Então, ocorreu a visita ao Cairo do secretário da Defesa Leon Panetta. Tudo isto no primeiro mês da presidência de Morsi.

Panetta voltou a Washington muito satisfeito porque os dirigentes militares egípcios, que têm sido os protagonistas na estratégia regional dos EE.UU. e os defensores dos interesses estadunidenses no Egito, não só se relacionavam bem com Morsi como inclusive tinham uma agenda comum.

O resto já é parte da história. Dias ou semanas depois do otimismo de Panetta, Morsi mandou sem mais os militares, dos corredores do poder político, de volta a seus quartéis. Washington não teve outra alternativa a não ser pôr boa cara ante esta situação e quase difundiu o embuste de que Morsi consultou ao governo de Obama antes de tomar medidas em relação aos militares egípcios.

No entanto, a verdade saiu à luz no final de semana. Os EE.UU. podem estar enfrentando um imenso revés em seus esforços para influenciar a presidência de Morsi. A carta que Burns levou há um mês continha aparentemente um convite de Obama para que Morsi visitasse Washington.

Em lugar de fazê-lo, Morsi viajará a China e ao Irã.

Anunciou-se no domingo no site oficial do presidente egípcio. Ao que parece, Morsi combinará as visitas a China e ao Irã. Parece que realizará uma visita de três dias à Chine na próxima segunda-feira por convite do presidente Hu Jintao e de Pequim tem a intenção de viajar a Teerã na quinta-feira para assistir à Cúpula do Movimento dos Não Alinhados.

Pequim ainda não anunciou a visita de Morsi. O jornal de propriedade governamental China Daily publicou um comentário na segunda-feira intitulado “A visita de Morsi ao Irã poderia remodelar a paisagem política”, que intencionadamente evitou toda sugestão de que o itinerário do presidente também incluiria Pequim.

No entanto, o emblemático jornal egípcio Al-Ahram informou que Morsi e Hu “têm a intenção de discutir temas cruciais enfrentados pelo mundo árabe, como a situação síria e o problema palestino. Os dois presidentes também discutirão maneiras de realçar o intercâmbio comercial entre seus respectivos países além do aumento do investimento chinês em Egito”.

Al-Ahram resumiu: “As duas visitas podem marcar mudanças na política exterior do Egito, considerando que ambos países [China e Irão] têm tensas relações com os EE.UU., do qual Egito tem sido um aliado leal, especialmente durante o regime do presidente derrubado Hosni Mubarak”.

Cão fraldiqueiro de ninguém

Decerto, o Oriente Médio dá-se conta do fato de que os estadunidenses não são bem vistos no Cairo. Sem dúvida, esta decisão leva a marca da Irmandade Muçulmana. O que se propõe?

Primeiro, os Irmãos Muçulmanos sabem que isto será muito bem recebido pelo clima público do Egito, que demanda veementemente uma nova orientação da política exterior que se desfaça do peso morto da cooperação com os EE.UU. e Israel da era Mubarak e volte à política exterior independente do país.

Segundo, Morsi não quer depender demasiadamente da “assistência” do Fundo Monetário Internacional e/ou dos abastados Estados do Conselho de Cooperação do Golfo (CCG), que se vê pressionado a aceitar apesar de vir associada a condições políticas.

O Fundo Monetário Internacional dita termos duros para um empréstimo de 3,2 bilhões de dólares para o Egito. O Banco Islâmico de Desenvolvimento, com sede em Jeddah, aceitou outorgar financiamento ao Egito por 2,5 bilhões de dólares. O Catar depositará dois bilhões no Banco Central do Egito a fim de aliviar a escassez de divisas estrangeiras no Egito. No ano passado, a Arábia Saudita anunciou a ajuda ao Egito por quatro bilhões de dólares em “empréstimos com juros reduzidos, depósitos e subvenções”. Tratava-se de uma intensa luta dirigida pelos EE.UU. para sobornar a alma de Egito.

É possível que Morsi veja a China como uma potencial investidora na economia egípcia porque Pequim não fixa condições à cooperação econômica e atua geralmente segundo as regras do mercado, ajustadas às políticas neoliberais que em geral serão adotadas por Morsi. O importante é que os Irmãos sabem perfeitamente que os países do CCG –Bahrain, Kuwait, Omã, Catar, Arábia Saudita – mas especialmente a Arábia Saudita, veem-nos com desagrado e inquietude, como um perigo existencial para seus regimes autoritários. A Arábia Saudita, em particular, teve uma relação problemática com a Irmandade.

O defunto príncipe herdeiro Nayef utilizou métodos brutais para reprimir as atividades da Irmandade na Arábia Saudita. O jornal do establishment saudita Asharq Al-Awasat demonstrou sua antipatia a Morsi no sábado, quando num artigo assinado, o veterano editor do jornal, Osman Mirghani, escreveu:

O golpe que Morsi deu [nos militares], que lhe permitiu tomar o poder, foi completamente imprevisto, não só para os dirigentes do CSFA [Conselho Supremo das Forças Armadas] como também para o povo egípcio em seu conjunto… Essas decisões foram semelhantes a um golpe de Estado… A Irmandade tratou de dominar a arena política desde que sequestrou a revolução e aproveitou a onda revolucionária para chegar ao governo, apesar do fato de que se uniu bem tarde a essa revolução… A Irmandade debilitou a todos os demais partidos e por isso se negou deliberadamente a cooperar ou se coordenar com eles no período de transição prévio às eleições.

O Egito está governado agora por declarações e decisões “constitucionais” emitidas por um presidente que tem muito mais poder do que teve algum dia Mubarak… Se alguém disser de Morsi… que se libertou, e à presidência, da custodia e da intervenção do exército, terá que formular a pergunta: será seguido pela libertação de Morsi da Irmandade, que parece estar presente a todas suas decisões e medidas?

Deve-se atentar que esta forte crítica apareceu um mês depois da visita de Morsi a Riad por convite do rei Abdullah e dois dias antes da cúpula extraordinária da Organização da Conferência Islâmica (OCI) em Jeddah, na qual participou Morsi.

Disse-se que enquanto se dirigia à cúpula da OCI Morsi chamou à “mudança de regime” na Síria, implicando que o Egito é um dócil seguidor da linha fixada pela Arábia Saudita, Catar e Turquia. Mas, na realidade, Morsi desconsiderou a troika ao propor uma solução à crise síria mediante a formação de um Grupo de Contato formado por Arábia Saudita, Turquia, Irã e Egito, que poderia mediar um diálogo e a reconciliação síria conducente a uma transição política pacífica numa atmosfera livre de violência.

Aperto de mãos através da Arábia

Certamente, a inclusão do Irã por parte de Morsi no Grupo de Contato proposto representou ignorar a Arábia Saudita, que promoveu a cúpula da OCI. Depois houve a linguagem corporal, que é importantíssima em conferências entre árabes. À margem da cúpula da OCI, Morsi trocou apertos de mão e beijos com o presidente iraniano Mahmud Ahmadinejad e falou-lhe de maneira muito calorosa.

Teerã cumprimentou rapidamente a proposta de Morsi, o que por sua vez levou ao apreço pela Irmandade no Cairo que viu na calorosa reação de Teerã uma confirmação inconfundível de que o Egito começa a recuperar parte da influência diplomática e estratégica que teve outrora na região. Uma espécie de sociedade de admiração mútua formou-se entre Cairo e Teerã em meio aos áridos desertos da Península Arábica.

Três coisas emergiram da participação de Morsi na cúpula da OCI. Primeiro, Morsi mostrou que o Egito propõe levar a cabo uma política exterior independente dos planos ocidentais ou dos países petroleiros do Golfo. Isto é, o Egito já não seguirá docilmente seus passos nem aceitará uma posição inferior.

Segundo, o Egito não vê a Turquia como um modelo, apesar da sonora propaganda ocidental desde o aparecimento da Primavera Árabe de que o islamismo do tipo ao que se adere o atual governo dirigido por Recep Tayyip Erdogan é uma receita válida para um Oriente Médio doente. Erdogan voltou de uma visita ao Cairo no ano passado imaginando que era uma estrela do rock para os egípcios, mas ao que parece não é o que pensa Morsi.

Terceiro, a decisão de Morsi de incluir o Irã como sócio na busca da paz na Síria significou uma rejeição do enfoque ocidental e saudita-turco. À margem da cúpula da OCI, o Ministro de Relações Exteriores egípcio Mohammed Amr também se reuniu com seu homólogo iraquiano Al Akbar Salehi para urgir que o Teerã ajude a solucionar a crise síria.

Na verdade, ainda é cedo, mas a decisão de Morsi de visitar o Irã (país com o qual o Egito não tem relações diplomáticas) só pode ser vista como um ato estratégico com profundos envolvimentos para a segurança regional e a política global. Requer uma verdadeira explicação.

Por uma parte, o Irã é o primeiro país muçulmano depois da Arábia Saudita que visita Morsi no Oriente Médio. A rua árabe tomará nota de que os Irmãos Muçulmanos no Egito recusam a noção (propagada pela Arábia Saudita e pelo Ocidente) de uma “meia lua xiita” dirigida pelo Irã que propõe uma ameaça às comunidades sunitas no Oriente Médio muçulmano.

Evidentemente, o Egito propõe normalizar suas relações com o Irã, enquanto o Egito de Mubarak estava inundado de temores maniqueístas de conspirações iranianas para desestabilizá-lo. As coisas mudaram. O líder adjunto da Irmandade, Mahmud Ezzat, disse recentemente a Associated Press: “O antigo regime costumava converter a qualquer de seus rivais [de Mubarak] num fantasma. Nós [a Irmandade] não queremos fazer como Mubarak e exagerar no temor contra o Irã”.

Do ponto de vista de Teerã, isto representa um grande progresso diplomático e geopolítico num tempo difícil quando as conversas P5+1 do Irã estão num ponto morto. Dito simplesmente, as equações no Oriente Médio de repente caíram na incerteza. Pretendia-se que tudo fosse um pequeno logaritmo do “campo de Teerã (Irã, Síria, Hezbollah e Hamas)” contra o “campo estadunidense (Arábia Saudita, Israel, Turquia e Catar)”. Mas Morsi está cruzando despreocupadamente essa barreira geopolítica.

Poderia ocorrer uma grande reordenação da política regional? No mínimo, o caleidoscópio está mudando e de repente parece que as situações da Síria, Líbano ou Gaza poderiam estar carregadas de novas possibilidades. (Na verdade, Morsi deixou claro na cúpula da OCI que qualquer enfoque da crise síria não deve tirar a atenção do problema palestino, que é o tema crucial para o mundo muçulmano).

A grande pergunta é que impulsiona à Irmandade do Egito. A crença geral é que os Irmãos Muçulmanos são gente muito cautelosa e que demorarão o tempo necessário para reajustar o cálculo de poder no Cairo, para não falar da bússola da política exterior do Egito. Mas no último período de oito dias, começou a emergir uma nova imagem dos Irmãos Muçulmanos. Qual é a explicação?

Nenhuma volta à era Mubarak

Em retrospectiva, as medidas de Morsi em relação aos militares há uma semana foi um golpe preventivo. Os Irmãos Muçulmanos consideraram que sua melhor possibilidade seria aproveitar a onda de altas expectativas na opinião pública a favor de mudanças fundamentais nas políticas nacionais e que qualquer demora e desídia em fazê-lo levaria a que os militares conseguissem superioridade e a neutralizar politicamente a liderança de Morsi.

Igualmente, os Irmãos Muçulmanos desconfiam do papel dos EE.UU. e de suas verdadeiras intenções em relação à liderança de Morsi. Há que recordar que a Irmandade (e o Hamas) acusaram explicitamente o Mossad de Israel de ser responsável pelo ataque terrorista no Sinai no dia 5 de agosto.

Não está claro o que conduziu os Irmãos Muçulmanos a chegar a essa conclusão, mas o Sinai tem sido um lugar sem lei durante décadas e é inconcebível que os serviços de inteligência israelenses não tenham prestado atenção aos grupos islâmicos militantes lá presentes. Na realidade, o que verdadeiramente sucedeu a 5 de agosto segue sendo uma incógnita e é duvidoso achar que os beduínos possam organizar uma operação tão profissional.

Ademais, há outro fator irritante. O ataque terrorista no Sinai ocorreu depois das reuniões de Morsi com os dirigentes do Hamas no Cairo e sua decisão de aliviar parcialmente as restrições no cruzamento em Rafah, o que por suposto converteu num deboche o “bloqueio” de Gaza por Israel.

Seja como for, o ataque no Sinai teve lugar inclusive enquanto os EE.UU. aumentavam a pressão sobre Morsi para que ressuscitasse de modo ótimo as relações de segurança e militares da era Mubarak entre Cairo, Washington e Tel Aviv. Tanto Clinton como Panetta fizeram o possível para persuadir Morsi de recuperar o espírito da cooperação tripartite dos EE.UU.-Egito-Israel em relação ao Sinai.

No entanto, os Irmãos Muçulmanos se dariam conta de que semelhante regresso às políticas em relação a Israel da era Mubarak seria profundamente recusado pelo público egípcio –islâmicos e seculares da mesma forma – e ademais desacreditaria à Irmandade e erosionaria a credibilidade da presidência de Morsi, em suma, um suicídio político. Os Irmãos Muçulmanos também saberiam que qualquer configuração das estratégias regionais com o foco colocado no terrorismo eliminaria toda possibilidade de mudança política em relação a Gaza.

Resumindo, a decisão de Morsi de abrir uma linha para Pequim e Teerã deve ser considerada num contexto de grande profundidade. Os Irmãos Muçulmanos esperam com apreensão um plano estadunidense-israelense para desestabilizar o governo de Morsi se não se ajustar aos ditames de Washington. Por isso, procuram possibilidades de reduzir o atual nível de dependência exagerada dos EE.UU. e seus aliados do Golfo diversificando as relações externas do país e agregando cooperações contrapostas que ajudem a realçar a autonomia estratégica do país.

A próxima semana promete ser um momento definidor na política no Oriente Médio e os alinhamentos entre os árabes quando Morsi viajar a Pequim e a Teerã. Com o afastamento do Egito, as estratégias regionais dos EE.UU. estão muito equivocadas. A pergunta imediata será: o que ganharão, depois de tudo, ao conquistar Damasco com tanta violência brutal e bestialidade insensata se já se perderam o Cairo e Bagdá?

*O embaixador M. K. Bhadrakumar foi diplomata de carreira do Serviço Exterior da Índia. Exerceu suas funções na extinta União Soviética, Coreia do Sul, Sri Lanka, Alemanha, Afeganistão, Paquistão, Uzbequistão, Kuwait e Turquia.