Thursday, August 23, 2012

Egito ignora os Estados Unidos



por M. K. Bhadrakumar*, traduzido por Vinicius C. para o Batalha de Ideias.


A decepção deve estar dominando em Washington. O Egito afasta-se da aliança com os EE.UU. e a amarga verdade já não se pode ocultar ou dissimular.

Washington não esperava que o “lado correto da história” se desenvolvesse desta maneira. A Primavera Árabe gerou um fruto estranho no Egito, uma pura raça, não como os híbridos da Tunísia, Líbia ou Iêmen.

Deve-se considerar o seguinte: o presidente Barack Obama foi um dos primeiros chefes de Estado que felicitou Mohammed Morsi por sua vitória eleitoral em maio. Obama rompeu o protocolo e chamou-o para cumprimentá-lo mostrando a ansiedade de Washington de desenvolver uma esplêndida relação com ele.

Em seguida, Obama escreveu uma carta a Morsi e enviou ao secretário adjunto de Estado, Williams Burns, ao Cairo para entregá-la pessoalmente. Depois de Burns, a secretária de Estado Hillary Clinton foi ao Cairo de novo para uma audiência com Morsi. Então, ocorreu a visita ao Cairo do secretário da Defesa Leon Panetta. Tudo isto no primeiro mês da presidência de Morsi.

Panetta voltou a Washington muito satisfeito porque os dirigentes militares egípcios, que têm sido os protagonistas na estratégia regional dos EE.UU. e os defensores dos interesses estadunidenses no Egito, não só se relacionavam bem com Morsi como inclusive tinham uma agenda comum.

O resto já é parte da história. Dias ou semanas depois do otimismo de Panetta, Morsi mandou sem mais os militares, dos corredores do poder político, de volta a seus quartéis. Washington não teve outra alternativa a não ser pôr boa cara ante esta situação e quase difundiu o embuste de que Morsi consultou ao governo de Obama antes de tomar medidas em relação aos militares egípcios.

No entanto, a verdade saiu à luz no final de semana. Os EE.UU. podem estar enfrentando um imenso revés em seus esforços para influenciar a presidência de Morsi. A carta que Burns levou há um mês continha aparentemente um convite de Obama para que Morsi visitasse Washington.

Em lugar de fazê-lo, Morsi viajará a China e ao Irã.

Anunciou-se no domingo no site oficial do presidente egípcio. Ao que parece, Morsi combinará as visitas a China e ao Irã. Parece que realizará uma visita de três dias à Chine na próxima segunda-feira por convite do presidente Hu Jintao e de Pequim tem a intenção de viajar a Teerã na quinta-feira para assistir à Cúpula do Movimento dos Não Alinhados.

Pequim ainda não anunciou a visita de Morsi. O jornal de propriedade governamental China Daily publicou um comentário na segunda-feira intitulado “A visita de Morsi ao Irã poderia remodelar a paisagem política”, que intencionadamente evitou toda sugestão de que o itinerário do presidente também incluiria Pequim.

No entanto, o emblemático jornal egípcio Al-Ahram informou que Morsi e Hu “têm a intenção de discutir temas cruciais enfrentados pelo mundo árabe, como a situação síria e o problema palestino. Os dois presidentes também discutirão maneiras de realçar o intercâmbio comercial entre seus respectivos países além do aumento do investimento chinês em Egito”.

Al-Ahram resumiu: “As duas visitas podem marcar mudanças na política exterior do Egito, considerando que ambos países [China e Irão] têm tensas relações com os EE.UU., do qual Egito tem sido um aliado leal, especialmente durante o regime do presidente derrubado Hosni Mubarak”.

Cão fraldiqueiro de ninguém

Decerto, o Oriente Médio dá-se conta do fato de que os estadunidenses não são bem vistos no Cairo. Sem dúvida, esta decisão leva a marca da Irmandade Muçulmana. O que se propõe?

Primeiro, os Irmãos Muçulmanos sabem que isto será muito bem recebido pelo clima público do Egito, que demanda veementemente uma nova orientação da política exterior que se desfaça do peso morto da cooperação com os EE.UU. e Israel da era Mubarak e volte à política exterior independente do país.

Segundo, Morsi não quer depender demasiadamente da “assistência” do Fundo Monetário Internacional e/ou dos abastados Estados do Conselho de Cooperação do Golfo (CCG), que se vê pressionado a aceitar apesar de vir associada a condições políticas.

O Fundo Monetário Internacional dita termos duros para um empréstimo de 3,2 bilhões de dólares para o Egito. O Banco Islâmico de Desenvolvimento, com sede em Jeddah, aceitou outorgar financiamento ao Egito por 2,5 bilhões de dólares. O Catar depositará dois bilhões no Banco Central do Egito a fim de aliviar a escassez de divisas estrangeiras no Egito. No ano passado, a Arábia Saudita anunciou a ajuda ao Egito por quatro bilhões de dólares em “empréstimos com juros reduzidos, depósitos e subvenções”. Tratava-se de uma intensa luta dirigida pelos EE.UU. para sobornar a alma de Egito.

É possível que Morsi veja a China como uma potencial investidora na economia egípcia porque Pequim não fixa condições à cooperação econômica e atua geralmente segundo as regras do mercado, ajustadas às políticas neoliberais que em geral serão adotadas por Morsi. O importante é que os Irmãos sabem perfeitamente que os países do CCG –Bahrain, Kuwait, Omã, Catar, Arábia Saudita – mas especialmente a Arábia Saudita, veem-nos com desagrado e inquietude, como um perigo existencial para seus regimes autoritários. A Arábia Saudita, em particular, teve uma relação problemática com a Irmandade.

O defunto príncipe herdeiro Nayef utilizou métodos brutais para reprimir as atividades da Irmandade na Arábia Saudita. O jornal do establishment saudita Asharq Al-Awasat demonstrou sua antipatia a Morsi no sábado, quando num artigo assinado, o veterano editor do jornal, Osman Mirghani, escreveu:

O golpe que Morsi deu [nos militares], que lhe permitiu tomar o poder, foi completamente imprevisto, não só para os dirigentes do CSFA [Conselho Supremo das Forças Armadas] como também para o povo egípcio em seu conjunto… Essas decisões foram semelhantes a um golpe de Estado… A Irmandade tratou de dominar a arena política desde que sequestrou a revolução e aproveitou a onda revolucionária para chegar ao governo, apesar do fato de que se uniu bem tarde a essa revolução… A Irmandade debilitou a todos os demais partidos e por isso se negou deliberadamente a cooperar ou se coordenar com eles no período de transição prévio às eleições.

O Egito está governado agora por declarações e decisões “constitucionais” emitidas por um presidente que tem muito mais poder do que teve algum dia Mubarak… Se alguém disser de Morsi… que se libertou, e à presidência, da custodia e da intervenção do exército, terá que formular a pergunta: será seguido pela libertação de Morsi da Irmandade, que parece estar presente a todas suas decisões e medidas?

Deve-se atentar que esta forte crítica apareceu um mês depois da visita de Morsi a Riad por convite do rei Abdullah e dois dias antes da cúpula extraordinária da Organização da Conferência Islâmica (OCI) em Jeddah, na qual participou Morsi.

Disse-se que enquanto se dirigia à cúpula da OCI Morsi chamou à “mudança de regime” na Síria, implicando que o Egito é um dócil seguidor da linha fixada pela Arábia Saudita, Catar e Turquia. Mas, na realidade, Morsi desconsiderou a troika ao propor uma solução à crise síria mediante a formação de um Grupo de Contato formado por Arábia Saudita, Turquia, Irã e Egito, que poderia mediar um diálogo e a reconciliação síria conducente a uma transição política pacífica numa atmosfera livre de violência.

Aperto de mãos através da Arábia

Certamente, a inclusão do Irã por parte de Morsi no Grupo de Contato proposto representou ignorar a Arábia Saudita, que promoveu a cúpula da OCI. Depois houve a linguagem corporal, que é importantíssima em conferências entre árabes. À margem da cúpula da OCI, Morsi trocou apertos de mão e beijos com o presidente iraniano Mahmud Ahmadinejad e falou-lhe de maneira muito calorosa.

Teerã cumprimentou rapidamente a proposta de Morsi, o que por sua vez levou ao apreço pela Irmandade no Cairo que viu na calorosa reação de Teerã uma confirmação inconfundível de que o Egito começa a recuperar parte da influência diplomática e estratégica que teve outrora na região. Uma espécie de sociedade de admiração mútua formou-se entre Cairo e Teerã em meio aos áridos desertos da Península Arábica.

Três coisas emergiram da participação de Morsi na cúpula da OCI. Primeiro, Morsi mostrou que o Egito propõe levar a cabo uma política exterior independente dos planos ocidentais ou dos países petroleiros do Golfo. Isto é, o Egito já não seguirá docilmente seus passos nem aceitará uma posição inferior.

Segundo, o Egito não vê a Turquia como um modelo, apesar da sonora propaganda ocidental desde o aparecimento da Primavera Árabe de que o islamismo do tipo ao que se adere o atual governo dirigido por Recep Tayyip Erdogan é uma receita válida para um Oriente Médio doente. Erdogan voltou de uma visita ao Cairo no ano passado imaginando que era uma estrela do rock para os egípcios, mas ao que parece não é o que pensa Morsi.

Terceiro, a decisão de Morsi de incluir o Irã como sócio na busca da paz na Síria significou uma rejeição do enfoque ocidental e saudita-turco. À margem da cúpula da OCI, o Ministro de Relações Exteriores egípcio Mohammed Amr também se reuniu com seu homólogo iraquiano Al Akbar Salehi para urgir que o Teerã ajude a solucionar a crise síria.

Na verdade, ainda é cedo, mas a decisão de Morsi de visitar o Irã (país com o qual o Egito não tem relações diplomáticas) só pode ser vista como um ato estratégico com profundos envolvimentos para a segurança regional e a política global. Requer uma verdadeira explicação.

Por uma parte, o Irã é o primeiro país muçulmano depois da Arábia Saudita que visita Morsi no Oriente Médio. A rua árabe tomará nota de que os Irmãos Muçulmanos no Egito recusam a noção (propagada pela Arábia Saudita e pelo Ocidente) de uma “meia lua xiita” dirigida pelo Irã que propõe uma ameaça às comunidades sunitas no Oriente Médio muçulmano.

Evidentemente, o Egito propõe normalizar suas relações com o Irã, enquanto o Egito de Mubarak estava inundado de temores maniqueístas de conspirações iranianas para desestabilizá-lo. As coisas mudaram. O líder adjunto da Irmandade, Mahmud Ezzat, disse recentemente a Associated Press: “O antigo regime costumava converter a qualquer de seus rivais [de Mubarak] num fantasma. Nós [a Irmandade] não queremos fazer como Mubarak e exagerar no temor contra o Irã”.

Do ponto de vista de Teerã, isto representa um grande progresso diplomático e geopolítico num tempo difícil quando as conversas P5+1 do Irã estão num ponto morto. Dito simplesmente, as equações no Oriente Médio de repente caíram na incerteza. Pretendia-se que tudo fosse um pequeno logaritmo do “campo de Teerã (Irã, Síria, Hezbollah e Hamas)” contra o “campo estadunidense (Arábia Saudita, Israel, Turquia e Catar)”. Mas Morsi está cruzando despreocupadamente essa barreira geopolítica.

Poderia ocorrer uma grande reordenação da política regional? No mínimo, o caleidoscópio está mudando e de repente parece que as situações da Síria, Líbano ou Gaza poderiam estar carregadas de novas possibilidades. (Na verdade, Morsi deixou claro na cúpula da OCI que qualquer enfoque da crise síria não deve tirar a atenção do problema palestino, que é o tema crucial para o mundo muçulmano).

A grande pergunta é que impulsiona à Irmandade do Egito. A crença geral é que os Irmãos Muçulmanos são gente muito cautelosa e que demorarão o tempo necessário para reajustar o cálculo de poder no Cairo, para não falar da bússola da política exterior do Egito. Mas no último período de oito dias, começou a emergir uma nova imagem dos Irmãos Muçulmanos. Qual é a explicação?

Nenhuma volta à era Mubarak

Em retrospectiva, as medidas de Morsi em relação aos militares há uma semana foi um golpe preventivo. Os Irmãos Muçulmanos consideraram que sua melhor possibilidade seria aproveitar a onda de altas expectativas na opinião pública a favor de mudanças fundamentais nas políticas nacionais e que qualquer demora e desídia em fazê-lo levaria a que os militares conseguissem superioridade e a neutralizar politicamente a liderança de Morsi.

Igualmente, os Irmãos Muçulmanos desconfiam do papel dos EE.UU. e de suas verdadeiras intenções em relação à liderança de Morsi. Há que recordar que a Irmandade (e o Hamas) acusaram explicitamente o Mossad de Israel de ser responsável pelo ataque terrorista no Sinai no dia 5 de agosto.

Não está claro o que conduziu os Irmãos Muçulmanos a chegar a essa conclusão, mas o Sinai tem sido um lugar sem lei durante décadas e é inconcebível que os serviços de inteligência israelenses não tenham prestado atenção aos grupos islâmicos militantes lá presentes. Na realidade, o que verdadeiramente sucedeu a 5 de agosto segue sendo uma incógnita e é duvidoso achar que os beduínos possam organizar uma operação tão profissional.

Ademais, há outro fator irritante. O ataque terrorista no Sinai ocorreu depois das reuniões de Morsi com os dirigentes do Hamas no Cairo e sua decisão de aliviar parcialmente as restrições no cruzamento em Rafah, o que por suposto converteu num deboche o “bloqueio” de Gaza por Israel.

Seja como for, o ataque no Sinai teve lugar inclusive enquanto os EE.UU. aumentavam a pressão sobre Morsi para que ressuscitasse de modo ótimo as relações de segurança e militares da era Mubarak entre Cairo, Washington e Tel Aviv. Tanto Clinton como Panetta fizeram o possível para persuadir Morsi de recuperar o espírito da cooperação tripartite dos EE.UU.-Egito-Israel em relação ao Sinai.

No entanto, os Irmãos Muçulmanos se dariam conta de que semelhante regresso às políticas em relação a Israel da era Mubarak seria profundamente recusado pelo público egípcio –islâmicos e seculares da mesma forma – e ademais desacreditaria à Irmandade e erosionaria a credibilidade da presidência de Morsi, em suma, um suicídio político. Os Irmãos Muçulmanos também saberiam que qualquer configuração das estratégias regionais com o foco colocado no terrorismo eliminaria toda possibilidade de mudança política em relação a Gaza.

Resumindo, a decisão de Morsi de abrir uma linha para Pequim e Teerã deve ser considerada num contexto de grande profundidade. Os Irmãos Muçulmanos esperam com apreensão um plano estadunidense-israelense para desestabilizar o governo de Morsi se não se ajustar aos ditames de Washington. Por isso, procuram possibilidades de reduzir o atual nível de dependência exagerada dos EE.UU. e seus aliados do Golfo diversificando as relações externas do país e agregando cooperações contrapostas que ajudem a realçar a autonomia estratégica do país.

A próxima semana promete ser um momento definidor na política no Oriente Médio e os alinhamentos entre os árabes quando Morsi viajar a Pequim e a Teerã. Com o afastamento do Egito, as estratégias regionais dos EE.UU. estão muito equivocadas. A pergunta imediata será: o que ganharão, depois de tudo, ao conquistar Damasco com tanta violência brutal e bestialidade insensata se já se perderam o Cairo e Bagdá?

*O embaixador M. K. Bhadrakumar foi diplomata de carreira do Serviço Exterior da Índia. Exerceu suas funções na extinta União Soviética, Coreia do Sul, Sri Lanka, Alemanha, Afeganistão, Paquistão, Uzbequistão, Kuwait e Turquia.

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