Monday, May 14, 2012

Kony 2012: AFRICOM e os interesses do imperialismo na África

Essa matéria foi publicada na Edição 458 do Jornal Inverta, em 23/03/2012

O vídeo Kony 2012 discute Joseph Kony e seu LRA (Exército de Resistência do Senhor), grupo militar que atua no norte de Uganda, região rica em petróleo, com o objetivo de incentivar o apoio à invasão militar dos EUA e de seus aliados da OTAN

No dia 05 de março, o vídeo Kony 2012, dirigido por Jason Russell, da ONG “Invisible Children” foi colocado nos sites “YouTube” e “Vimeo”, somando em poucas semanas mais de cem milhões de acessos. O filme discute Joseph Kony e seu LRA (Exército de Resistência do Senhor), grupo militar que atua no norte de Uganda, com o objetivo de incentivar o apoio à invasão militar do país e a detenção de Kony. Apesar das tentativas deste pseudodocumentário de justificar o aumento da presença dos Estados Unidos e de seus aliados da OTAN numa região rica em petróleo, as guerras imperialistas estão cada vez mais desacreditadas e, em vez de apoio, Kony 2012 suscitou grande desconfiança quanto às intenções reais da grande potência e do seu AFRICOM (“Africa Command”).

Em fevereiro de 2007, o Departamento de Defesa dos EEUU anunciou a criação da infraestrutura para um novo comando militar no continente africano de modo a assegurar seus interesses no local. Este integraria uma arquitetura formada por outros comandos, como o CENTCOM (Oriente Médio) e o PACOM (Oceano Pacífico), que já atuavam na África, treinando e armando as forças armadas dos países do continente diretamente ligados aos Estados Unidos.

O AFRICOM foi fundado em 30 de setembro de 2008, com sede em Stuttgart, na Alemanha, enquanto não se encontra melhor lugar na África – nenhum dos países africanos quer, com efeito, sediar a estrutura do AFRICOM. Seus principais objetivos são controlar recursos estratégicos, principalmente petróleo, gás e urânio, e neutralizar as crescentes relações econômico-culturais chinesas no continente. No primeiro caso, cabe registrar que a Nigéria é o quinto maior exportador de petróleo para os EEUU e, junto de Guiné Equatorial e Angola, abastece 20% dos combustíveis fósseis do país, com perspectivas de chegar a 25% em 2015. Quanto à China, os investimentos do país oriental atingem atualmente US$5,5 bilhões por ano – principalmente em projetos de infraestrutura, na mineração e nas telecomunicações – os empréstimos concedidos já superam os US$10 bilhões e a China importa 1,5 milhão de barris de petróleo por dia. Além disso, na década passada, mais de 750 mil chineses estabeleceram-se na África e o país desenvolveu centros culturais para aprendizado de mandarim e cantonês em zonas rurais.

Por estes motivos e no sentido do “novo conceito estratégico” estabelecido na reunião da OTAN em Lisboa no final de 2010, o qual pretende que a organização possa “atuar em qualquer lugar do mundo”, a administração Obama recrudesceu a presença militar na África: fez exercícios militares e estabeleceu seus navios de guerra próximos a regiões ricas em petróleo; reforçou as relações com países estrategicamente localizados como Quênia, Djibuti e São Tomé e Príncipe; organizou golpes de Estado no Níger e recentemente no Mali; levou grupos pró-imperialistas ao poder em países que ainda lhes opunham alguma resistência, como Costa do Marfim e Líbia; incentivou a invasão de diversos países à Somália sob o pretexto de luta contra o terrorismo; e foi o principal articulador na criação do estado-títere do Sudão do Sul no começo de 2011.

Em março do ano passado, a Casa Branca publicava a Resenha Quadrienal de Defesa 2010, que definia os planos militares do país para os próximos quatro anos. Este projeto já está sendo levado a cabo, principalmente no Chifre da África e no Sahel, por meio da capacitação, assessoramento e equipamento de países aliados a fim de desenvolver forças preparadas para conflitos de pequena escala ou de baixa intensidade e realizar operações secretas como assassinatos seletivos. É neste contexto que se encontra o interesse, anunciado em outubro de 2011 por Barack Obama, de enviar cem tropas a Uganda e interferir militarmente no país.

Antes de tratar propriamente do vídeo, é necessário detalhar a história do LRA. O exército liderado por Kony foi formado em 1987 e atua numa área que compreende não somente Uganda, mas também a República Centro-Africana, o Sudão do Sul, a República Democrática do Congo e provavelmente o Chade. Sua ideologia é uma combinação de um fanatismo católico extremo – Kony se apresenta como possuído pelo Espírito Santo – e um forte componente animista que funde religiões tradicionais e messianismo. De fato, o LRA representa politicamente os acholi, povo que, desde 1996, tem sido expulso de suas terras, ricas em petróleo e em outros recursos naturais, e confinado em campos de refugiados pela ditadura títere de Yoweri Museveni.
Kony 2012, entretanto, não discute o governo Museveni: com um tom apelativo, limita-se a apontar o sequestro, a escravização e a militarização de crianças pelo LRA. Apesar de os Estados Unidos já estarem efetivamente atuando na região, o vídeo conclama apoio popular a uma intervenção ainda maior. Desta forma, muitas foram as questões suscitadas: por que necessariamente uma intervenção militar? Por que agora, se o LRA já existe há 26 anos? Dado que se trata de um exército que atua em vários países, Kony estaria mesmo em Uganda? Qual seria a extensão desta guerra, se não estiver? Por que nada é dito da ditadura Museveni?

Quando exibido publicamente no norte de Uganda, supostamente ao público que pretende “ajudar”, a simplificação do conflito não foi bem recebida pelos espectadores e muitos chegaram a jogar pedras contra a tela. A extrema hostilidade deve-se ao rechaço à lógica simplista de “mais um conflito africano” sem dimensão histórica e a uma campanha capitalista de estilo ocidental que envolve a divulgação por Facebook e Twitter, um pacote com camisetas, pulseiras e adesivos com a cara de Joseph Kony e o convite a políticos como Bill Clinton e George W. Bush e personalidades como Bono, Oprah e Lady Gaga. Apesar de mencionar a história de um menino ugandês, os personagens principais são estadunidenses e as soluções passam pelas grandes potências imperialistas – afinal, trata-se do “fardo do homem branco”.

A ONG Invisible Children tem como patrocinadores grupos extremamente conservadores: o think thank Discovery Institute – defensor de uma tese neocriacionista, o Design Inteligente, contra o darwinismo –, a National Christian Foundation e a Caster Foundation, duas fundações que promovem a homofobia nos Estados Unidos e no mundo. Não é demais lembrar que a ditadura Museveni tornou a homossexualidade um crime em Uganda punível com pena de morte. Além disso, Invisible Children juntou-se com duas outras organizações, Resolve e Digitaria, para criar a LRA Crisis Tracker, uma plataforma digital de mapeamento de ataques supostamente cometidos pelo LRA. A Resolve é patrocinada por diversas entidades favoráveis às guerras dos EEUU em nome da democracia e da liberdade, tais como a Human Rights Watch e o International Rescue Comittee, e os parceiros da Digitaria são as redes CBS, FOX, MTV, ESPN, Adidas, NBC e Warner Brothers. Muitos jornalistas, como Keith Harmon Snow, alegam que a Invisible Children tem relações diretas com serviços de inteligência estadunidenses e a ONG também é acusada de dar apoio financeiro ao governo ugandês e ao pró-imperialista Exército de Libertação do Povo do Sudão (SPLA).

Quanto a Museveni, o Tribunal Penal Internacional o acusa também de ter usado crianças como soldados durante o massacre perpetrado no Congo no final dos anos 1990 e começo dos 2000. O exército do país é desproporcionalmente grande em comparação a sua diminuta dimensão e há milhares de soldados ugandeses ocupando a Somália para manter seu estado atual de ingovernabilidade que facilita a exploração pelas potências imperialistas. Em troca, o governo Museveni recebe US$ 45 milhões em ajuda militar. Aliás, numa decisão recente, o Pentágono admitiu que tal suporte aumentasse: um grupo de 30 marines seria mandado para Uganda para treinar as tropas do país a lutarem não apenas contra o LRA, mas também contra o Al Shabaab somali. E a intervenção não se restringirá à Uganda, Kony está sendo usado como pretexto para a atuação dos EEUU em cinco países africanos.

A África Central já estava nos planos militares dos EEUU há muito tempo: além de sua proximidade com o instável e estrategicamente localizado chifre africano, há na região países como o Sudão do Sul, rico em petróleo, e a República Democrática do Congo, cheia de minérios (diamante, cobalto, ouro, cobre, urânio, magnésio, coltan etc). Por isso mesmo, já no final de 2008, os Estados Unidos lançaram a fracassada Operação Lightning Thunder. Em julho de 2009, foi encontrado cerca de 2,5 a 6 bilhões de barris de petróleo na zona dos grandes lagos em Uganda. Menos de um ano depois, em maio de 2010, Obama aprovou um projeto de lei que permitia aos EEUU enviarem forças militares contra o LRA em Uganda, na República Democrática do Congo, no Sudão do Sul e na República Centro-Africana. Em outubro do ano passado, a Casa Branca anunciou que enviaria tropas para Uganda no mesmo momento em que o primeiro-ministro de Uganda, Amama Mbabazi, e outros dois ministros foram acusados de receberem suborno de empresas petroleiras, particularmente da britânica Tullow Oil, para regularizarem a partilha do espólio.

Quando perguntado “por que agora?”, o porta-voz da embaixada estadunidense em Uganda, Daniel Travis, disse: “é simplesmente o resultado de um processo que começou em 2009, quando o Congresso aprovou uma lei sobre a intervenção, o presidente a assinou em 2010 e, para ser sincero, agora nossos compromissos em outras partes do mundo estão sendo reduzidos e temos o pessoal e os recursos para esta missão”. Não se pode esquecer tampouco que este é um momento muito delicado nas relações entre Sudão e Sudão do Sul, que tentam uma aproximação diplomática, apesar das tentativas das potências ocidentais de “dividir para imperar”. No centro do debate, está justamente a polarização em torno das companhias petrolíferas chinesas: de um lado, o governo pró-imperialista de Juba, alegando “não cooperação”, expulsou o diretor da empresa chinesa Petrodar e, de outro, Cartum solicita o retorno às negociações com o país asiático. O Sudão do Sul ainda depende da estrutura de transporte e refino sudanesa e, por isso, pretende construir um oleoduto pelo Quênia até o porto de Mombassa. Tudo isso afeta diretamente Uganda.

O vídeo Kony 2012 ecoa a velha propaganda bélica, adaptando-a à roupagem de um novo cyber ativismo pequeno-burguês. No fundo, não faz mais que reproduzir a batida lógica simplista de um só homem responsável pela desgraça de todo um país, já empregada contra Saddam Hussein, Osama Bin Laden, Bashar Al Assad etc, e a intervenção militar como única saída. Primeiramente, deve-se ressaltar que a causa central da atual situação de Uganda são os anos de exploração neocolonialista pela Inglaterra, durante os quais se impôs aos povos acholi o trabalho forçado. Segundo, é importante notar a aplicação ao cenário internacional do discurso de responsabilização individual que permeou a prática da “tolerância zero”, uma doxa penal conservadora, fortalecida a partir dos anos 1980, com a ascensão do neoliberalismo.

Em seu discurso de aceitação no Senado dos EEUU como Secretária de Estado no início de 2009, Hillary Clinton deu destaque ao que chamou “smart power” (poder inteligente), ou seja, recorrer a todas as ferramentas possíveis para fazer valer os interesses dos EEUU, combinando táticas agressivas (“hard power”) e capacidade de atração (“soft power”). Neste caso, a ex-senadora assinalou a importância da divulgação de campanhas pela internet, entre outros meios, para auxiliar no trabalho ideológico de promoção das guerras imperialistas (dado que, em parte, Obama foi eleito para limpar internacionalmente o extremo desgaste provocado pelos anos de arrogância de George W. Bush). Kony 2012 é um primeiro teste nesta direção.

o original encontra-se em http://bit.ly/JSV7id

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