No começo de julho, a secretária-geral estadunidense Hillary Clinton disse em Tbilisi, capital da Geórgia, que os Estados Unidos “podiam andar e mascar chiclete ao mesmo tempo”. Tal colocação foi feita num momento em que Clinton realizava uma viagem de cinco dias para cinco países do Leste Europeu e o Sul do Cáucaso: Polônia, Ucrânia, Azerbaijão, Geórgia e Armênia (em sua maioria, mais próximos aos Estados Unidos do que à Rússia). Os Estados Unidos sinalizaram, com isso, que podem manter um diálogo com a Rússia e conservar suas parcerias estratégicas ao mesmo tempo.
Em campanha eleitoral e no primeiro ano de mandato (2008-09), o presidente Barack Obama adotou um discurso de “reaproximação” e “pacificação” com diversos países, entre eles a própria Rússia. Deve-se recordar que, no governo Bush, os dois países tiveram alguns desentendimentos, principalmente em âmbito militar, devido à recusa russa de aceitar a fascista doutrina de guerra preventiva. Em resposta, o governo dos Estados Unidos estimularia as chamadas “revoluções das cores” em diversos países da região e defenderia a construção de um escudo antimíssil na Polônia e na República Tcheca.
Houve três temas recorrentes neste tour de Clinton: primeiramente, como já mencionado, os Estados Unidos indicam que não sacrificarão seu jogo de interesses entre os países do antigo campo socialista em função de suas relações com a Rússia; segundo, Clinton fez um discurso hipócrita de que o país rejeita as pretensões russas de concertar “esferas de influência”; e, por fim, os Estados Unidos continuarão a afirmar seus laços com a região, especialmente Polônia, Ucrânia e Azerbaijão que vivem uma atípica aproximação com a Rússia. Em seu discurso na Geórgia, Clinton asseverou que os Estados Unidos continuarão financiando organizações não-governamentais que apóiem a “democratização no espaço pós-soviético”, o que irrita profundamente Moscou. O ministério das relações exteriores do país denunciou, dois dias depois, as intenções intervencionistas escondidas nestas políticas de “promoção da democracia” e lembrou que os Estados Unidos deveriam resolver os abusos contra os direitos humanos que eles próprios cometem.
Para entender os interesses em jogo, não se pode desconsiderar toda a geopolítica energética da região. Segundo Gregory White em “15 oleodutos e gasodutos que estão mudando o mapa estratégico mundial”, há alguns projetos em disputa. Por um lado, os russos desejam construir o gasoduto Mozdok, do Azerbaijão à Ossétia do Norte, região em disputa desde 2008 entre a potência e a Geórgia; e há também um projeto de gasoduto para 2015, entre Rússia e Áustria, que pularia a Ucrânia e passaria por todo sudeste europeu. Por outro, os Estados Unidos desejam a construção do gasoduto Nabucco para 2015, entre Turquia e Áustria, de modo a reduzir a influência russa nos mercados europeus e oferecer uma alternativa às reservas iranianas; além desse, existe o projeto do gasoduto da Linha Branca para 2016, que liga a Geórgia à Romênia e, conseqüentemente, a toda União Européia; e o gasoduto transcaspiano, entre Turcomenistão e Azerbaijão, rota alternativa para que os países centro-asiáticos abasteçam o mercado europeu sem passarem pela Rússia.
Deste modo, é compreensível que todo o bonito discurso estadunidense dos últimos anos tenha sido substituído pela política de interesses de um império em crise. Como escreveu Lenin em Imperialismo, fase superior do capitalismo: “quanto mais o capitalismo se desenvolve, mais se faz sentir a falta de matérias-primas, mais dura se torna a concorrência e a procura de fontes de matérias-primas no mundo inteiro e mais brutal é a luta pela posse das colônias”. Karl Marx, por sua vez, pontuou, no Prefácio à crítica da economia política, que “como não se julga um indivíduo pelo que ele pensa de si próprio, também não se pode julgar uma tal época de revolução pela consciência que ela tem de si própria, é preciso, pelo contrário, explicar esta consciência pelas contradições da vida material, pelo conflito entre as forças produtivas sociais e as relações de produção”.Em outras palavras, é um equívoco considerar que uma grande potência imperialista abdicará de seus interesses, no caso, energéticos em nome da paz ou qualquer que seja seu discurso no momento.
Na viagem diplomática, Hillary Clinton qualificou, em Tbilisi, a presença militar russa nas regiões da Ossétia do Sul e da Abkhazia como “invasão e ocupação”, primeira vez, desde agosto de 2008, que a administração estadunidense utiliza-se de uma expressão condenatória para o conflito no Cáucaso. Apesar de haver rechaçado as declarações da secretária-geral, para a diplomacia russa o importante é que os Estados Unidos ainda não cederam à solicitação georgiana de venda de armas antiaéreas e anti-tanques.
O Azerbaijão, além da importância energética (gasoduto Nabucco), desfruta de uma localização estratégica no Cáucaso. Diante da indefinição política no Quirguistão, onde está situada a base aérea de Manas, Baku poderia ser a rota de trânsito de tropas e recursos para a guerra no Afeganistão.
No que diz respeito à Ucrânia (e também à Geórgia), Hillary tratou sobre a expansão da OTAN, alegando que via positivamente uma aproximação destes países à organização militar. Declarou, na presença do presidente pró-russo Viktor Yanukovich, que “há muitas oportunidades para a Ucrânia assumir uma posição de proeminência e influência na região, na Europa e até além”, remarcando possibilidades de cooperação em segurança e defesa entre os dois países. Disse ainda que o equilíbrio que o país europeu estava almejando em suas relações com os Estados Unidos, Rússia e União Européia fazia muito sentido para a promoção de seus interesses em longo prazo e para a conservação de sua integridade territorial, soberania e independência. Hillary disse também que a potência ajudaria com a modernização do setor energético ucraniano para tornar o país independente na área. Os Estados Unidos demonstram claramente que pretendem neutralizar quaisquer esforços russos de recuperação dos laços com a Ucrânia, abalados pela revolução laranja da pró-ianque Julia Timoshenko. É simbólico também que o FMI tenha aprovado um empréstimo de US$14,9 bilhões à Ucrânia no mesmo dia em que Clinton aterrissou em Kiev.
Apesar de Obama ter dito, no ano passado, que o projeto do escudo antimíssil seria abandonado, Hillary Clinton assinou em Varsóvia uma emenda ao mesmo sistema de defesa que se julgava descartado. A Polônia receberá uma bateria de mísseis que ficará situada na base militar de Morag, 250 km ao norte de Varsóvia e somente a 60 km da fronteira com a província russa de Kaliningrado. Trata-se de um movimento unilateral dos Estados Unidos que contraria diretamente o principal passo do processo de “pacificação” entre os dois países. Além disso, assim como no caso da Ucrânia, Clinton parece estar disposta a minar as recentes tentativas de aproximação entre Moscou e Kiev que pareciam promissoras depois da vitória de Komorowskinas eleições do país. O ministério das relações exteriores russo exigiu mais objetividade e sinceridade de Washington e questionou a necessidade de implementação de um mecanismo de defesa como este, uma vez que não há qualquer ameaça imediata ou futura na Europa.
Enfim, as relações entre os dois países têm esfriado consideravelmente, como se viu no ridículo “escândalo dos espiões” que abalaria a imagem de Moscou entre a chamada “opinião pública” capitalista ocidental e se mostraria depois uma farsa. Para a Rússia, sua aproximação de Washington representou uma perda no diálogo com o Irã, uma vez que votaria contra o país na resolução 1929 do Conselho de Segurança da ONU. Os Estados Unidos, por sua vez, revelam novamente uma dupla moral em âmbito diplomático: promovem o “smart power” [poder inteligente] de Obama, baseado em sua suposta imagem de conciliação, e mandam Hillary Clinton negociar em termos verdadeiramente imperiais. Aliás, ultimamente, a secretária-geral tem assumido no mundo uma projeção maior do que o próprio presidente, mais dedicado a assuntos domésticos (como o vazamento da BP) e acusado pela oposição ultraconservadora de ser “fraco”. Parece até uma tentativa do Partido Democrata de anulá-lo politicamente e mostrar Hillary como o “pulso firme” do partido para a extrema direita estadunidense.
De qualquer forma, o questionamento de Fidel Castro a Obama em sua reflexão O undécimo presidente dos Estados Unidos mostra-se mais válida do que nunca: “o que fará quando o imenso poder que tomou em suas mãos seja absolutamente inútil para ultrapassar as insolúveis contradições antagônicas do sistema?”
Vinícius C., Agência Inverta.
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